Carta a M. Lannes de Ponteiroapontado.blogspot.com
A maneira como a gente lê é bem menos evidente para terceiros, mas influencia muito na maneira como escrevemos, e até mesmo como vivemos. Lemos muito, a respeito de coisas muito importantes, sobre as quais as mais diversas interpretações podem ser tecidas, cujas conseqüências máximas são guerras religiosas ou revoluções que derrubam ditaduras. Por isso, tenho certo pudor em revelar a minha maneira de ler, cartas, livros ou o que quer que seja (todo pudor é também medo).
Cortesia não é só quando você dá uma gorjeta a um garçom cujo serviço lhe agradou, mas a rodada de cerveja por conta da casa que o dono do bar paga em situações especiais. Foste injusto com esse sentimento. Entendo o que quiseste dizer, e admito que seja uma palavra invocada com propósitos maus em algumas situações, mas é necessária à convivência humana. Desculpo-me, porém, de tê-la usado inconvenientemente na despedida da minha carta. Era apenas um recurso estilístico sem nenhuma profundidade, um erro que pretendo não cometer futuramente.
Todo pensamento é eu-achista. Concordo contigo. O eu-achismo e a soberba não tem sequer tanto pecado quanto o “eu-achismo assoberbado” que cunhaste com tanta precisão. O primeiro é natural, e o segundo é necessário, e só o terceiro é ilusório e evitável. Nietzsche era soberbo, e sabia disso. Para ser-se soberbo é preciso saber disso, mesmo que de forma humilde. É um dilema em que eu me encontro às vezes, e que me leva à soberba muito facilmente, acreditar que a condição primordial para ser grande, é saber-se grande. Eu sei que sou grande, muito grande. Sei que sou um gigante comparado com os muitos supérfluos que vagueiam tateando pelo mundo de sombras de Platão, enquanto eu anseio pelas luzes cegantes da realidade. E, entretanto, vejo tão poucas chances de me livrar dessas correntes que chego a querer desistir às vezes. Mas nunca me entregar ao eu-achismo assoberbado, que é como que uma tentativa vã de complitude, algo que além de eximir-se da culpa de existir (tudo que a gente cria é culpada de alguma coisa. Culpa MESMO. Essas palavras que escrevo não são o que deveriam ser, e são culpadas por isso, por não serem o que deveriam ser. E eu sou o culpado de elas existirem, e sou o culpado inclusive de não ser eu mesmo o que deveria ser). É um fim para si mesmo, uma pretensa “obra completa”. Mais uma vez, estou apenas analisando, resenhando o que já disseste.
[Vou, portanto, começar a opinar (maldito eu-achismo que nos persegue independente do eufemismo que usemos para “eu acho”) a respeito deste assunto tão importante.]
Como colocaste Nietzsche, Kafka e Cortázar no mesmo bolo? Se o Eu-achismo é o principio de todo o pensamento, ele é em si vazio de significado, e não basta que todos sejam eu-achistas para formar uma categoria válida. É preciso que se diferenciem os diferentes tipos de eu-achismo que os distinguem, e isso apenas assumindo como lei geral a pré-existência do eu-achismo em qualquer coisa que se escreva. Existem aqueles que criam achismos. Nietzsche criou uma marionete (Zaratustra) através da qual passou todas as suas próprias idéias, idéias que eram condutas para a destruição de todas as idéias. Não se pode dizer que ele acha o que quer que seja. Ele tem certeza de tudo aquilo Fala com uma convicção que ultrapassa em muito o eu-achismo. Arrisco-me a acrescentar ao rol das classificações literárias a Soberba Autêntica, ou Soberba Esclarecida. Os filósofos podem não ser necessariamente soberbos esclarecidos, caso de Nietzsche, com a sua critica precisa aos valores religiosos e à metafísica vã, por ser, essa sim, de origem puramente Eu-achista (segundo a minha interpretação de Nietzsche, diria que seriam Eu-achismos comunitários ou sociais. O Eu-achismo do povo, mais ordinariamente chamado de Fé).
Por outro lado, Cortazar é um pseudo-achista. Sua obra é fruto de um espírito criado efemeramente durante o nascimento da sua obra. Assim como você reclamou de que maus interpretes consideram reais algumas histórias que tenham sido contadas apenas pela arte de ser contada, Cortazar reclamaria de ser considerado um eu-achista. Ele é um Muitos-eus-achista!
Por fim, Kafka, outro tipo de eu-achismo. O metaforista essencial, que atinge o cerne daquele conhecimento universal através da arte é um criador de formas para o informe, e não um criador de sentidos para as formas que cria. Seus achismos são sentidos para todos os seus leitores (àqueles preparados para essas verdades). Ele, assim como Nietzsche, não acha: tem certeza! Difere dos anteriores por ser a sua certeza uma de natureza intrínseca ao ser humano. Enquanto que o primeiro desconstruiu, e deu parâmetros para esta desconstrução, o segundo simplesmente ignorou os parâmetros todos e apenas criou sem trelas ou grilhões. O terceiro, por outro lado, descobriu, desvendou, perscrutou. Cavou a alma humana em busca de sentidos. E os encontrou. É um Nós-achista!
Essa é a minha interpretação de cada um desses autores, segundo a minha leitura deles, o que nos leva também, ao ponto inicial deste texto, a respeito da maneira como cada um lê. Preciso agora que me digas: Qual deve ser o nosso papel como artista? Qual é a responsabilidade sobre o que escrevemos a que estamos sujeitos? Será que ela existe? E sim... São essas questões que fazem de nós mais do que animais letrados, como a maioria das pessoas.
Vou contar um conto rápido para suscitar alguma idéia para resposta, mas sem pretensão de ser mais do que simplesmente interessante. Estava discutindo com um grupo de pessoas a respeito de Harry Potter - que eu repudio. Os adeptos dizem ser apenas um livrinho de ficção e não uma grande obra de literatura e que por isso, não se deve submetê-lo a grandes análises críticas (não vou fazer essas análises aqui, mas eu posso provar por A+B que Harry Potter é uma baboseira do inicio ao fim). Eu acho que precisamente o que faz dele um livrinho de ficção, e não uma grande obra de literatura é o fato de alguém o estar avaliando. A coisa foi evoluindo a ponto de eu dizer que “uma vida que não é avaliada não vale a pena ser vivida” (Sócrates), querendo dizer com isso que qualquer coisa, só é boa ou má depois de ser avaliada, e que não nos basta ler passivamente um livro. Temos que saber colocá-lo acima ou abaixo de nós mesmos, e isso inclui também, analisar a nós mesmos! Aí saiu a frase que explodiu com todos os ânimos da conversa: O HOMEM NÃO É UM ANIMAL!
Eu já estava revoltado o suficiente com as pessoas com quem discutia que, meio sem saber, defendiam a ignorância e a complacência, desde que tivessem suas cachoeiras e seus becks para fumar no Sana. Diziam eles que o homem nada tinha de essencialmente diferente do animal. Animais são eles!, eu deveria ter dito. Mas não. Acabei eu ficando com fama de chato, pra variar. Irritante pacas.
Quanto à questão de recomeçar o texto, estou tentando bolar uma maneira de escrever passagens de um romance desassociadas umas das outras, para que eu possa futuramente conectá-las sem precisar ler o romance inteiro de uma vez só. Posso continuar as passagens separadas de acordo com a minha inspiração. Ainda não fiz isso, mas pode te ajudar essa idéia.
Por fim, vou te dizer onde eu acho que há uma interrupção mais abrupta da linearidade do seu pensamento transcrito em prosa, que não necessariamente será o momento em que paraste para descansar. Sendo ou não sendo, aposto que poderemos desfrutar de analisar a minha conjectura!
“ ...Diga-se de passagem, essa é a pior categoria na qual eu gostaria de ver um texto meu classificado.” – penso ter sido aqui o descanso.
Quanto às palavras... Deus... Não estou com cabeça para isso agora, mas não deixemos escapar da nossa correspondência esse tópico tão interessante.
Um grande abraço
Do sempre e muito seu
F. Negreiros – supercarneiro.blogspot.com
P.S.: Sinto muito não ter respondido a nenhuma das suas questões novamente.