Por que não?

Parabéns àqueles que se dão ao trabalho de abaixar para ver o que está escrito num papel do chão. Parabéns àqueles que encontram mensagens em garrafas. Parabens àqueles que escutam palavras jogadas ao vento. Esta é a minha homenagem.

Sunday, November 15, 2009

Carta a M. Lannes

Tenho muito prazer em ouvir noticias tuas. Ocasião inusitada a do nosso encontro, e a respeito deste feriado muito ainda me embala os pensamentos. Aliás, a viagem de volta foi ótima, mas delas o Bernardes manda notícias. De qualquer forma, encerro os preâmbulos apenas ressaltando meus pesares por ter demorado tanto a retribuir a tua palavra!

Eu gostei de uma (palavra) que usaste logo a seguir a Primeiramente queria falar sobre uma coisa me veio à cabeça outro dia. A palavra é ‘confessional’ (... em tom confessional...). Sem nenhum motivo maior do que umas palavras que eu escrevi há muito, e cujo significado ainda não conheço completamente eu mesmo.

(Isso é o que há de mais fascinante na arte, é que o artista não precisa entendê-la completamente. Gepeto e Pinóquio. A arte tem que ser uma entidade viva independente de seu criador. É uma dessas frases pelas quais eu tenho muito carinho esta que a palavra ‘confessional’ me lembra, e eu tenho orgulho de não saber o que ela quer dizer totalmente. Faço-me entender?)

Pois bem, esquece o Gepeto. Não quero me distanciar do assunto! Dizia eu: Quem não tem um confessor não tem nada, isso há muito. Diga lá, então, em vista de tudo isso que foi dito a respeito de amizade, o que significa esta frase e tudo o que em torno dela, há anos foi dito? Amigos, nós somos com certeza. Imaginei agora que, se quisessem saber o que é amizade, o nosso poderia perfeitamente ser um caso analisável para bons resultados de definições. Mas já penso ter dito tudo o que queria sobre isso. Na verdade, apenas constato que já tinha dito tudo, de certa forma, anos atrás.

O projeto Babel vai às mil maravilhas! Veja bem: podemos utilizar um motor de busca sintático e gramatical, e cruzar as informações. Podemos inserir vetores de conjugação, tempo verbal, plural e singular, masculino e feminino, para limitar os resultados a coisas coerentes! Tudo que precisamos agora é de um engenheiro de computação!

E o significado de teres parado de escrever uma carta que era uma no momento em que tomaste a decisão de parar de escrever, e deixou de ser? Isto é, nada te impediria de continuar escrevendo e dali sairia uma carta, mas tu paras. Imagine que apenas poucos minutos se passam: o quão diferente o resultado seria se fossem dias? Pensei nisso também raciocinando que ao voltar a escrever a carta dias depois, tu serias obrigado a lê-la novamente, ao contrário do caso de parares por apenas alguns minutos, ou mesmo horas. Em todo o caso, enquanto pensava sobre isso imaginei perfeitamente uma função que mostrasse o quão diferentes, isto é, em seus caracteres, uma história seria da outra, consoante sua localização ao ponto referencial escolhido, que foi o momento em que paraste de escrever.

O seu conto é comovente. O filme da calha, infelizmente, não consegui ver. O resto, bem... como é possível escrever reticências em uma carta? Não é algo que fazemos apenas quando falamos, por termos um lapso de tempo entre o falar e o pensar? Quando escrevemos o pensamento espera. Ou então fica indo e voltando que nem um moleque de bicicleta que tentamos acompanhar a pé. Mas sim, ao falar, engasgamos, reticenciamos (opa!), as vezes até perdemos o fio da meada. Só espero que entendas o sentimento por trás de uma ausência de palavras.

Opa! Obstacularizada! É difícil fazer uma lista dessas de palavras inventadas por que elas aparecem no meio dos nossos turbilhões, sem causar estranhamento a princípio, mas escapulindo depois quase sem se fazer notar, se não for pregada no papel. Vou pesquisar alguns Neologismos para ti que compilarei separadamente (isso me dá uma idéia, a respeito do Projeto Babel).

Não quero terminar de escrever esta carta sem te falar dos filmes de verdade que assistimos juntos, "American Psico" e “In the Wild”, ou *pigarro* “natureza selvagem”.

Sobre o segundo, qualquer espectador criterioso encontrará os óbvios exageros na história, e alguns podem ser levados a acreditar mesmo que tudo foi inventado, mas o mais importante é determinar o sentido do que de bom o filme tem: a divulgação de um feito heróico. Digamos que o filme seja uma merda, os atores forçados, a direção básica e apelativa (por exemplo, a cena do banho em câmera lenta – piegas pra caralho, sinto muito), e a produção pitoresca, querendo ser épica, quando trata-se de uma história muito mais simples, sobre a simplicidade, inclusive. Resta apenas o ato em si (mais ou menos como no caso do “man on wire”) e as palavras que eu, pelo próprio estilo literário, identifiquei como possíveis citações. Algumas eram tão boas que, caso não fossem citações dele, eram contribuições geniais, talvez de alguma das pessoas que meteu o bedelho no roteiro. Como a frase final, que agora recapitulando melhor, consigo até meio que traduzir: Se eu estivesse agora voltando para casa, correndo para abraçar meus pais, estaria vendo o que estou vendo agora?

A resposta é óbvia. Não importa se foi o rapaz o autor, ou o primo roteirista da família que se deu bem com a história toda. É uma consciência arrebatadora para se ter, e eu louvo todos os mártires dessa forma de fé no nada. Nesse deus ao qual CRISTOPHER, a máscara humana de Alexander Supertramp, agradece em suas ultimas palavras (palavras essas que o filme não deixa dúvidas de ser uma citação: eu tive uma boa vida e agradeço muito a deus por tudo que vivi ou coisa parecida). É o deus do vazio, um deus que também atende pelo nome de amor, mas que não tem nenhum nome. Alias, como Saramago responderia a este enigma? O nome do vazio? É como imaginar um buraco onde caibam todas as coisas do universo.

E esse mérito, eu encontro no ato. Ao filme resta a relativa honestidade e reverência ao ato. Imagina que poderiam até mesmo mudar o final para ser mais comercial, e nós nunca ficaríamos sabendo: só mais um filme ruim e o ato não seria divulgado. Triste, mas acontece o tempo todo. Só uma coisinha me deixou intrigado, foi quando o velho senhor que queria adotar o Alex, precisamente na cena em que eles vão se separar: estão em uma estrada e o enquadramento centraliza um conjunto de placas: passagem proibida, não entre, caminho contrário, em vermelho e branco e preto, que logo são encobertas pela chegada do carro com o herói e o seu ultimo guardião do limiar. Isso não seria semiótica? Subliminar não chega a ser, pois é recursivo. Não sai do contexto da história, mas tem um forte valor simbólico perceptível até inconscientemente. Você reparou em alguma coisa do gênero?

Quanto ao "American Psico", a questão é simples: a sede de sangue é apenas um luxo para uma sociedade hipócrita e egoista, de aparências e cartões de visita cuja unica diferença entre sí é a exclusividade dos materiais de que são feitos. Uma exentricidade privada com a qual ninguem gostaria de se ver envolvido. Para mim, o filme mostra o inicio do fim do mundo.

Agora chegou o momento de te perguntar: em uma parte do texto, eu fiz uma pausa longa, mais longa do que as outras. Qual foi?*

Voltando, portanto ao inicio da carta, encerro meu raciocínio com aquela proposta que te fiz antes de nos despedirmos: de começares a montar uma biblioteca com livros que eu acho pelas minhas viagens. Posso ir atrás daquele volume de Patajornas sobre o qual ouvimos falar, no Acre, que não foi enviado para o Haiti. Desta forma, poderíamos usufruir de uma mutua benesse. Uma simbiose perfeita para garantir o crescimento de uma biblioteca vasta, bem cuidada, muito consultada, e de conteúdo raro e exclusivo, em textos originais que teríamos que decifrar. Mas ao mesmo tempo, sinto que os tesouros de uma viagem nunca valem tanto quanto a viagem em si. Por isso o lema dos navegadores, Navegar é preciso, viver não é preciso.

O que acha? Claro que entre eles estarão algumas coisinhas minhas, para usares como achares melhor. Provavelmente não será muito. Mas muito valioso para mim. E tu serias então, o guardião da minha solidão no momento em que eu não voltasse. Aliás, a resposta para a questão do porque uma pessoa escreveria uma carta para outra que está presente na mesma sala: prática, treino para quando não estivermos nos vendo mais. Seria muito enriquecedor para a minha vida. Afinal de contas, quem não tem um confessor, não tem nada.