Por que não?

Parabéns àqueles que se dão ao trabalho de abaixar para ver o que está escrito num papel do chão. Parabéns àqueles que encontram mensagens em garrafas. Parabens àqueles que escutam palavras jogadas ao vento. Esta é a minha homenagem.

Thursday, August 26, 2010

Fragmento de diário (?) de Erasmo Patajornas

Pois bem. Estáva lá eu fazendo uma daquelas atividades corriqueiras, que de tão corriqueiras fazemos sem nem prestar atenção ao que se está fazendo. Dois fones de ouvido, um em cada orelha, me isolavam da barulheira toda que acontecia ao redor, a música tocava instrumental e calma. E isso fazia com que eu estivesse, apesar de executando mil tarefas ao mesmo tempo, pensando. Simplesmente pensando. Não raciocinando. Quando se pensa em algo que se está fazendo, na verdade está-se raciocinando, o que é significativamente diferente.

Estava eu, portanto, pensando sem prestar atenção ao que fazia, via ou escutava. Nesses tipos de transe, somente aquilo que soa estranho, onde entenda-se por estranho qualquer coisa que tire aquilo da normalidade e faça perder o status de corriqueiro, faz você voltar a atenção à atividade. Mas o curioso é que volta-se somente àquela relativa à interferência. Para exemplificar, vou usar o próprio seguimento da história. A música foi interrompida abruptamente, e a voz de um homem solene começou a anunciar propagandas políticas. Ou notícias políticas. Me recordo ouvir dizer que era obrigatório, pra ser mais preciso, ouvi mesmo somente esse termo, “obrigatório”. Nas palavras anteriores ainda estava em transe, e nas posteriores, me recuperando do susto.

Após recuperar-me do susto, a voz ritmada daquele locutor e as palavras com basicamente o mesmo tamanho impulsionaram-me novamente para o transe. Voltei do transe novamente por meio de algo dissonante. Em meio a inúmeras notícias sobre leis e congressos e gastos orçamentários, escutei uma frase que continha as palavras “pedófilo” e “castrado”. Novamente e pelos mesmos motivos de antes, não consgui distinguir nenhuma das outras palavras entre as quais se encontravam "pedófilo" e "castrado". Por alguns instantes cogitei ter entendido errado, e fosse “cassado” no lugar de “castrado”. Mas não, se me despertou tanto assim, certamente era “castrado”. Bem insólito mesmo, era o contexto em que elas se foram pronunciadas. Um noticiário político.

Não consegui mais pensar depois disso.
As palavras não foram repetidas.

conversa em um restaurante

Se uma pessoa compreender o que é importante na vida, souber pesar quanto vale o tempo dela e quanto vale o próprio dinheiro de que precisa para se sustentar, automaticamente se estende diante dela, também, uma solução prática para a melhoria da sua qualidade de vida. Estou dizendo que existe uma solução prática para a vida no sentido de conseguir, com quaisquer recursos disponíveis, alcançar um padrão de qualidade de vida digno, mas falo de uma solução muito mais profunda também. A transcendência, superação do eu através do autoconhecimento. Uma solução individual que não pode ser compartilhada nos mesmos termos (pois cada pessoa é diferente), mas segue, em termos gerais, os mesmos objetivos, ou seja, a busca pela felicidade. Basicamente, no que toca à nossa discussão, o que existe de controverso na minha idéia é a de que esta solução mais profunda que um homem adquire ao se conhecer está vinculada a uma solução prática viável. Não estou nunca negando que o inverso possa acontecer: uma pessoa que tenha desde berço um alto padrão de vida, e por isso pôde se dedicar ao que bem entendesse, encontrando, graças a isso, um caminho para si próprio e para o que é importante na vida e etc... Talvez seja justamente o meu caso, embora nós ainda estejamos ambos muito longe de uma superação de nós mesmos. Mas veja bem, existem casos em que de fato, uma pessoa atinge um grau elevado de compreensão exatamente ao deixar-se perder no mundo. Acontece de pessoas ricas encontrarem a felicidade e a mais autêntica transcendência precisamente na miséria e na abnegação. Por que não é viável supor, então, que alguém que já tenha nascido na miséria transcenda e tire dessa própria transcendência a força para ganhar seu sustento digno? E veja que ao passar em Santa Tereza vemos um artista que produz suas obras a partir do lixo. Não é isso um exemplo, contrário ao meu, que confirma a possibilidade da segunda hipótese de existir?

Você poderá contra-argumentar em vários pontos, inclusive em relação ao exemplo dado. Pode-se dizer que o artista de Santa Tereza não transcendeu nem mais nem menos do que eu, ou até que eu não faça a menor idéia do que é transcendência; que tanto meu acordeon quanto as esculturas de lixo são mercadorias em um mercado competitivo; que eu tenho uma visão iludida das condições precárias de vida, por não ter tido contato prolongado com ela. Que uma pessoa que não tem como pagar a sua casa, sua energia elétrica e seu meio de transporte a não ser que trabalhe por doze horas em cinco ou seis dias por semana, simplesmente não tem como se dedicar à busca pela transcendência, que para mim se encontra nas artes.

Mas isso seria ser tanto equivocado quando algo elitista.

Primeiro, se eu não sei o que é transcendência é por que ainda não transcendi, mas no momento em que souber, provavelmente não serei capaz de dizer em palavras. Portanto, basta aceitar esta proposta de transcendência como fato e teremos um mínimo de continuidade do raciocínio que, se tudo der certo, volta ao mesmo ponto explicando-se.

Segundo, as nossas obras de arte - ou seja lá como quiser chamar o produto 'mercantil' de um artista - são importantes para a sociedade da mesma forma que todas as outras tarefas de sustentação da vida, como plantio e pesca. O fato de haver um mercado da arte prova isso, além de provocar um efeito análogo ao que a pesca industrial tem sobre a qualidade do peixe (espero não ter que demonstrar a queda da qualidade dos produtos de consumo em geral, desde o aprimoramento e expansão da indústria para todos os setores da produção). Assim sendo, basta deixar claro o que acontece quando deixamo-nos cair no mercado da arte sem a força sublime de que te falei, e que leva à transcendência, e que deveria impulsionar todas as decisões humanas: não produzimos nada de qualidade.

Quanto à falta de tempo para se dedicar a uma arte antes que ela venha a dar frutos, ou mesmo para se de dedicar à própria reflexão pessoal que leva à transcendência, também não é uma desculpa válida. Lixo está disponível em qualquer lugar. Um mecânico que trabalhe 12h 7d passa a vida desenvolvendo uma habilidade técnica que pode ser aplicada à criação de formas, usando o lixo como suporte. Se nos tempos livres ele se dedicasse a projetar e executar essas obras, poderia, com certeza, realizar proezas incríveis graças à sua prática intensiva do material. Poderia combinar as várias ferramentas de que dispõe para fazer algo novo sem com isso abrir mão das 12 horas diárias, já que no próprio trabalho sempre há momentos de ócio. Não há trabalho que consuma a reflexão por toda a sua duração. Quando a mente do nosso mecânico divagasse, ela iria para as suas criações desinteressadas. É muito importante também que, a princípio, essas criações sejam mesmo desinteressadas. Mas continuemos na história do mecânico. Enquanto ele reflete sobre as formas, entra em contato com outras pessoas e conversa com elas sobre isso, descobre coisas novas e alguém pode lhe fazer uma proposta louca, como uma exposição conjunta ao ar livre, com outros artistas, ou um projeto de algum outro artista que gostaria de usar suas capacidades técnicas. Enfim, qualquer outra forma de aplicação da sua mente que seja mais vasta do que consertar carros. Mais livre, mais útil, mais fácil e menos exigente. Todas essas características cumulam ao longo da passagem do tempo, pois uma favorece a outra (quanto mais livre, menos exigente, mais fácil, mais útil, mais livre de novo). Se for bem sucedido, este mecânico pode estar morando em santa Tereza e dando conforto e bem estar para seus filhos, graças à arte. Outras histórias idênticas podem ser imaginadas e basta procurar um pouco que encontraremos milhões de casos que se encaixam no perfil.

Se mesmo assim você não está convencida de que qualquer um sempre arranja tempo para pensar em transcendência, basta ver as congregações de fiéis das incontáveis igrejas de qualquer religião. Basta imaginar que se, ao invés de dedicar seu tempo à adoração de um Deus personificado e à preparação para a morte, os fiéis dedicassem-se a seus próprios deuses internos e à suas aspirações criativas, o mundo seria mais belo e cheio de artistas. Se me permite fazer um pequeno deslize por uma questão que passa ao largo do assunto que estava esclarecendo, vale a pena dizer, a respeito de religião, que elas são uma espécie de solução coletiva para aqueles problemas individuais que mencionei no primeiro parágrafo. O problema das religiões é precisamente este: ser uma resposta conjunta para problemas individuais, que devem ser resolvidos individualmente. O que quer que tenha sido ao longo da história, hoje a religião não passa de uma máquina de controle, enfim...

Para finalizar, e tentar dar aquela volta que explica tudo, a arte está sim ao acesso de todos. Tenho que concordar no aspecto mais importante que pesa contra minha idéia, que é a importância de uma infância sadia para o florescimento da consciência critica e da autocrítica necessárias à arte. Desta forma, admito que haja pessoas que não tem condições - de tempo e de dinheiro - para dar a atenção necessária a um filho, criando um ciclo vicioso de hereditariedade de pobreza relacionada à falta de espírito. Mas eu sou menos elitista que qualquer um ao afirmar que de qualquer posição social pode surgir uma pessoa de espírito, e mais ainda, que a situação financeira não tem tanta importância na formação artística de uma criança quanto a própria consciência critica dos preceptores da criança. Para confirmá-lo, basta vermos como há incidência de pessoas ignorantes entre as de maior poder aquisitivo, provavelmente mais intensamente do que entre aquelas de pouca pobreza, mas com um mínimo de dignidade.

(Entenda ignorância como o oposto de transcendência)