Por que não?

Parabéns àqueles que se dão ao trabalho de abaixar para ver o que está escrito num papel do chão. Parabéns àqueles que encontram mensagens em garrafas. Parabens àqueles que escutam palavras jogadas ao vento. Esta é a minha homenagem.

Thursday, August 26, 2010

Fragmento de diário (?) de Erasmo Patajornas

Pois bem. Estáva lá eu fazendo uma daquelas atividades corriqueiras, que de tão corriqueiras fazemos sem nem prestar atenção ao que se está fazendo. Dois fones de ouvido, um em cada orelha, me isolavam da barulheira toda que acontecia ao redor, a música tocava instrumental e calma. E isso fazia com que eu estivesse, apesar de executando mil tarefas ao mesmo tempo, pensando. Simplesmente pensando. Não raciocinando. Quando se pensa em algo que se está fazendo, na verdade está-se raciocinando, o que é significativamente diferente.

Estava eu, portanto, pensando sem prestar atenção ao que fazia, via ou escutava. Nesses tipos de transe, somente aquilo que soa estranho, onde entenda-se por estranho qualquer coisa que tire aquilo da normalidade e faça perder o status de corriqueiro, faz você voltar a atenção à atividade. Mas o curioso é que volta-se somente àquela relativa à interferência. Para exemplificar, vou usar o próprio seguimento da história. A música foi interrompida abruptamente, e a voz de um homem solene começou a anunciar propagandas políticas. Ou notícias políticas. Me recordo ouvir dizer que era obrigatório, pra ser mais preciso, ouvi mesmo somente esse termo, “obrigatório”. Nas palavras anteriores ainda estava em transe, e nas posteriores, me recuperando do susto.

Após recuperar-me do susto, a voz ritmada daquele locutor e as palavras com basicamente o mesmo tamanho impulsionaram-me novamente para o transe. Voltei do transe novamente por meio de algo dissonante. Em meio a inúmeras notícias sobre leis e congressos e gastos orçamentários, escutei uma frase que continha as palavras “pedófilo” e “castrado”. Novamente e pelos mesmos motivos de antes, não consgui distinguir nenhuma das outras palavras entre as quais se encontravam "pedófilo" e "castrado". Por alguns instantes cogitei ter entendido errado, e fosse “cassado” no lugar de “castrado”. Mas não, se me despertou tanto assim, certamente era “castrado”. Bem insólito mesmo, era o contexto em que elas se foram pronunciadas. Um noticiário político.

Não consegui mais pensar depois disso.
As palavras não foram repetidas.

conversa em um restaurante

Se uma pessoa compreender o que é importante na vida, souber pesar quanto vale o tempo dela e quanto vale o próprio dinheiro de que precisa para se sustentar, automaticamente se estende diante dela, também, uma solução prática para a melhoria da sua qualidade de vida. Estou dizendo que existe uma solução prática para a vida no sentido de conseguir, com quaisquer recursos disponíveis, alcançar um padrão de qualidade de vida digno, mas falo de uma solução muito mais profunda também. A transcendência, superação do eu através do autoconhecimento. Uma solução individual que não pode ser compartilhada nos mesmos termos (pois cada pessoa é diferente), mas segue, em termos gerais, os mesmos objetivos, ou seja, a busca pela felicidade. Basicamente, no que toca à nossa discussão, o que existe de controverso na minha idéia é a de que esta solução mais profunda que um homem adquire ao se conhecer está vinculada a uma solução prática viável. Não estou nunca negando que o inverso possa acontecer: uma pessoa que tenha desde berço um alto padrão de vida, e por isso pôde se dedicar ao que bem entendesse, encontrando, graças a isso, um caminho para si próprio e para o que é importante na vida e etc... Talvez seja justamente o meu caso, embora nós ainda estejamos ambos muito longe de uma superação de nós mesmos. Mas veja bem, existem casos em que de fato, uma pessoa atinge um grau elevado de compreensão exatamente ao deixar-se perder no mundo. Acontece de pessoas ricas encontrarem a felicidade e a mais autêntica transcendência precisamente na miséria e na abnegação. Por que não é viável supor, então, que alguém que já tenha nascido na miséria transcenda e tire dessa própria transcendência a força para ganhar seu sustento digno? E veja que ao passar em Santa Tereza vemos um artista que produz suas obras a partir do lixo. Não é isso um exemplo, contrário ao meu, que confirma a possibilidade da segunda hipótese de existir?

Você poderá contra-argumentar em vários pontos, inclusive em relação ao exemplo dado. Pode-se dizer que o artista de Santa Tereza não transcendeu nem mais nem menos do que eu, ou até que eu não faça a menor idéia do que é transcendência; que tanto meu acordeon quanto as esculturas de lixo são mercadorias em um mercado competitivo; que eu tenho uma visão iludida das condições precárias de vida, por não ter tido contato prolongado com ela. Que uma pessoa que não tem como pagar a sua casa, sua energia elétrica e seu meio de transporte a não ser que trabalhe por doze horas em cinco ou seis dias por semana, simplesmente não tem como se dedicar à busca pela transcendência, que para mim se encontra nas artes.

Mas isso seria ser tanto equivocado quando algo elitista.

Primeiro, se eu não sei o que é transcendência é por que ainda não transcendi, mas no momento em que souber, provavelmente não serei capaz de dizer em palavras. Portanto, basta aceitar esta proposta de transcendência como fato e teremos um mínimo de continuidade do raciocínio que, se tudo der certo, volta ao mesmo ponto explicando-se.

Segundo, as nossas obras de arte - ou seja lá como quiser chamar o produto 'mercantil' de um artista - são importantes para a sociedade da mesma forma que todas as outras tarefas de sustentação da vida, como plantio e pesca. O fato de haver um mercado da arte prova isso, além de provocar um efeito análogo ao que a pesca industrial tem sobre a qualidade do peixe (espero não ter que demonstrar a queda da qualidade dos produtos de consumo em geral, desde o aprimoramento e expansão da indústria para todos os setores da produção). Assim sendo, basta deixar claro o que acontece quando deixamo-nos cair no mercado da arte sem a força sublime de que te falei, e que leva à transcendência, e que deveria impulsionar todas as decisões humanas: não produzimos nada de qualidade.

Quanto à falta de tempo para se dedicar a uma arte antes que ela venha a dar frutos, ou mesmo para se de dedicar à própria reflexão pessoal que leva à transcendência, também não é uma desculpa válida. Lixo está disponível em qualquer lugar. Um mecânico que trabalhe 12h 7d passa a vida desenvolvendo uma habilidade técnica que pode ser aplicada à criação de formas, usando o lixo como suporte. Se nos tempos livres ele se dedicasse a projetar e executar essas obras, poderia, com certeza, realizar proezas incríveis graças à sua prática intensiva do material. Poderia combinar as várias ferramentas de que dispõe para fazer algo novo sem com isso abrir mão das 12 horas diárias, já que no próprio trabalho sempre há momentos de ócio. Não há trabalho que consuma a reflexão por toda a sua duração. Quando a mente do nosso mecânico divagasse, ela iria para as suas criações desinteressadas. É muito importante também que, a princípio, essas criações sejam mesmo desinteressadas. Mas continuemos na história do mecânico. Enquanto ele reflete sobre as formas, entra em contato com outras pessoas e conversa com elas sobre isso, descobre coisas novas e alguém pode lhe fazer uma proposta louca, como uma exposição conjunta ao ar livre, com outros artistas, ou um projeto de algum outro artista que gostaria de usar suas capacidades técnicas. Enfim, qualquer outra forma de aplicação da sua mente que seja mais vasta do que consertar carros. Mais livre, mais útil, mais fácil e menos exigente. Todas essas características cumulam ao longo da passagem do tempo, pois uma favorece a outra (quanto mais livre, menos exigente, mais fácil, mais útil, mais livre de novo). Se for bem sucedido, este mecânico pode estar morando em santa Tereza e dando conforto e bem estar para seus filhos, graças à arte. Outras histórias idênticas podem ser imaginadas e basta procurar um pouco que encontraremos milhões de casos que se encaixam no perfil.

Se mesmo assim você não está convencida de que qualquer um sempre arranja tempo para pensar em transcendência, basta ver as congregações de fiéis das incontáveis igrejas de qualquer religião. Basta imaginar que se, ao invés de dedicar seu tempo à adoração de um Deus personificado e à preparação para a morte, os fiéis dedicassem-se a seus próprios deuses internos e à suas aspirações criativas, o mundo seria mais belo e cheio de artistas. Se me permite fazer um pequeno deslize por uma questão que passa ao largo do assunto que estava esclarecendo, vale a pena dizer, a respeito de religião, que elas são uma espécie de solução coletiva para aqueles problemas individuais que mencionei no primeiro parágrafo. O problema das religiões é precisamente este: ser uma resposta conjunta para problemas individuais, que devem ser resolvidos individualmente. O que quer que tenha sido ao longo da história, hoje a religião não passa de uma máquina de controle, enfim...

Para finalizar, e tentar dar aquela volta que explica tudo, a arte está sim ao acesso de todos. Tenho que concordar no aspecto mais importante que pesa contra minha idéia, que é a importância de uma infância sadia para o florescimento da consciência critica e da autocrítica necessárias à arte. Desta forma, admito que haja pessoas que não tem condições - de tempo e de dinheiro - para dar a atenção necessária a um filho, criando um ciclo vicioso de hereditariedade de pobreza relacionada à falta de espírito. Mas eu sou menos elitista que qualquer um ao afirmar que de qualquer posição social pode surgir uma pessoa de espírito, e mais ainda, que a situação financeira não tem tanta importância na formação artística de uma criança quanto a própria consciência critica dos preceptores da criança. Para confirmá-lo, basta vermos como há incidência de pessoas ignorantes entre as de maior poder aquisitivo, provavelmente mais intensamente do que entre aquelas de pouca pobreza, mas com um mínimo de dignidade.

(Entenda ignorância como o oposto de transcendência)

Wednesday, June 16, 2010

Um conto de Mário Negreiros

Sei que meu pai é um leitor assíduo deste blog, por isso, este texto é dedicado a ele.

"Havia, em um lugar distante, em um tempo remoto, uma aldeia a beira de um rio. Nesta aldeia havia um rapaz que gostava de passear de barco - uma pequena canoa - pelo rio. Um dia, em que saíra para seu passeio mais cedo do que o normal e prolongara-se ainda mais, encontrou um braço de rio, muito distante de sua aldeia. Já estava com fome, mas queria explorar aquele caminho desconhecido, por isso continuou.

"Depois de algum tempo o menino descobriu, com muita alegria, uma aldeia com casinhas muito parecidas com as da sua, e um pequeno píer em que amarrou a canoa e partiu para a exploração em terra. A aldeia estava vazia. As portas e janelas estavam fechadas e não havia pessoas nas ruas. Gritou

- Olá...?

"Mas ninguém respondeu. O rapaz tentou algumas outras vezes, mas desistiu. Como, entretanto, começava a escurecer o rapaz decidiu pernoitar. Mesmo estando com muita fome, seria mais seguro do que tentar navegar no escuro pelo rio.

"Qual não foi sua surpresa quando, aos primeiros pios de coruja, as janelas das casas começaram a abrir de par em par, revelando uma população de homens e mulheres felizes (embora muito pálidos), e até bem parecidos com os homens e mulheres da sua aldeia. Quando alguém percebeu sua presença, perguntou de onde o rapaz vinha, e este disse:

- Sou da aldeia que fica rio acima, e nós dormimos de noite e fazemos nossas coisas de dia.

"Isso surpreendeu muito os homens e mulheres daquele lugar, que, por sua vez, responderam:

- Ora, que curioso! Nós dormimos de dia e fazemos nossas coisas de noite.

"O rapaz fez muitas amizades naquela aldeia, que o recebeu contente e dividiu um pouco da sua comida com o rapaz, para que, na manhã seguinte, ele voltasse bem alimentado para sua aldeia, onde com certeza dormiria o dia todo, de tão cansado estava das suas explorações.

"Na sua aldeia natal, ficaram todos muito preocupados com o seu desaparecimento, e felizes com seu retorno. Ele quis mostrar a seus amigos a aldeia notívaga. Mas infelizmente, isso nunca aconteceu, pois quando uns dormiam, os outros estavam acordados, e vice versa. Desta forma, o rapaz passou a ter duas vidas. Sempre que queria, ia viver de noite por um dia ou dois. Ele ficou sendo o único a conhecer os dois mundos."

Retirado das memórias de infância.

Tuesday, May 25, 2010

Carta a M. Lannes

Hoje, pegando o metrô durante a manhã, fiquei deprimido e animado ao mesmo tempo. Uma gorducha simpática (aliás, provavel motivo pelo qual agi diferentemente que o normal) estava distribuindo gratuitamente o "Destak". As manchetes variavam desde as ocupações nas favelas até o último episódio de Lost. Fiquei até contente de ver uma menção ao show de Hermeto Pascoal em Diamantina, também presente no conteúdo do diário. Mas principalmente me deprimi com a escasses de valor literário a que estavam submetidas as pessoas que tem o jornal como principal fonte de leitura. Me animei imediatamente com esta depressão, por outro lado, ao pensar no nosso projeto em andamento.



Para concluir a história, chegando em casa pude ler uma matéria no Globo sobre a criação da célula artificial, que foi tão discretamente divulgado (do meu ponto de vista, comparando a notícias como a morte do Michael Jackson ou o corte de cabelo da Briney Spears, discreto é até pouco). Muito por acaso, dias atrás eu tinha, através das TEDtalks, assistido à própria conferência dada pelo Craig Venter em que foi anunciada esta conquista. Embasado pelas minhas próprias leituras recentes, tive muito cuidado em não decretar nenhum juízo de valor a respeito do fato, mas fui aos poucos associando não o fato em si, apenas a simples possibilidade de ele ser a pura verdade, com o que sabia do ponto de vista filosófico. Cheguei à seguinte conclusão: A célula artificial é o homem dando início, se não à colonização humana do universo, à colonização vital do universo. Uma vida projetada para habitar qualquer planeta é precisamente o que melhor define a transendência da própria vida na terra. Isso foi uma divagação tremendamente distante que sequer caberia expor em um jornal diário, que se limita a informações. As informações claras não permitem divagações como esta, e meu próprio e-mail começa a tomar rumos que são completamente contrários à natureza da informação. Se quero dizer o que aconteceu comigo esta manhã, porém, tenho que ser mais que informativo. O que existe de comum em todos os jornais, então, é precisamente o fato de pretenderem ser informações puras, e se não são todos assim, posso continuar na minha tese e afirmar que os que são, também são deprimentes.



Voltando à origem da vida anunciada no Globo, vale dizer que a matéria ocupava toda uma folha do caderno de ciências, com um desenho colorido e artístico que ocupava a maior parte do espaço disponível (o que é, aliás, estranho, já que o desenho não tinha nada de informatvo). Lá estava exposta, com muito mais relevância do que a própria descoberta (por exemplo, não explicaram as marcas-d'água das células nem abordaram nenhum assunto relativo ao longo processo de quinze anos, que teve muitas reviravoltas e obstáculos técnicos mencionáveis) as decisões tomadas imediatamente pelo presidente Obama, os riscos deta tecnologia para a segurança, caso caia em mãos de terroristas. Aliás, como eles conseguiram meter os terroristas no meio desta história?!?!? A parada demorou 15 anos para ser desenvolvida e agora acham que é só pegar a receita para assar o bolo? Enfim, em relação à filosofia básicamente citaram uns e outros, dizendo que isso prova que deus não existe e que não tem nada a ver com a vida, ou, o contrário, que sequer era verdade o fato de terem criado uma célula artificial, repentinamente mudando o conceito de princípio da vida para a célula e não para o DNA!



No final, a sensação era simplesmente de que nada tinha mudado no mundo, e isso é que me pareceu deprimente. Então, criaram vida artificial. E daí? E daí que os terroristas continuam soltos, as favelas ocupadas, o último episódio de Lost sendo pirateado, etc... Parece que a continuidade que deveria ser a verdadeira medida da existência se fixou em um formato diário, e que nenhuma mudança será realmente uma mudaça. Parece que, nesta inversão, o movimento contínuo que se petrificou, gerou nas pessoas um desejo terrível para uma mudança definitiva: Todos querem que tudo pare de mudar.



Sabe, pensando nisso, me dou conta, de que é uma ilusão que alimenta-se a si própria. Na verdade, estou reconhecendo nesta linha de raciocínio, o nosso já bem conhecido espetáculo. No fundo não passa disto. Essa ilusão que alimenta-se a si própria, não pode, de fato, ser movimentada por uma conspiração, a não ser que se entenda por conspiração, o desejo secreto de morte que toda a humanidade anda aspirando. Essa ilusão de que falo, para que fique bem claro, é a ilusão causada pela repetição do formato jornalístico: É a ilusão de um estático onde se manifesta o sempre móvel. É como um rolo compressor, que alisa o caminho pelo qual passamos. Sabemos, por que vêmos a nossa frente, o relevo do terreno, mas onde estamos, é tudo plano graças ao nosso próprio acordo interno de que o plano é melhor do que o escarpado. Pelo menos para nos movermos nele. É essa planificação geral da informação que cria a ilusão de que não há nada de novo no fato de termos criado vida em laboratório, ou pelo menos que há tanto de novo nisso quanto no penteado da Britney Spears. E esta ilusão, o plano em que andamos, é criada pelo próprio rolo compressor das nossas consiências conjuntas. O senso comum é o conhecimento que pesa sobre todas as outras formas de conhecimento, tornando-as indistinguíveis. O senso comum que une a sociedade é, como prolongamento amplificado de sua ação, o que massifica-a. O senso comum é a morte que atrai a sociedade. O espetáculo é a realização desta morte. É a inversão do verdadeiramente novo pelo sempre renovado da mesma forma. É a virtualidade da estagnação graças à constância do movimento.



Isso me anima. Nosso projeto ultrapassa e confronta isso. Acho que é bem diferente do que se lê por aí, e tem conteúdo que será válido para sempre. Parece uma frase boba, mas é apenas uma especificação do que me anima. Ser diferente, depois do discurso acima, espero eu, tem uma profundidade dupla, chegando às obscuridades do quase incompreensível se comparado com o que se lê por aí. Quanto ao fato de ter conteúdo que será válido para sempre, por mais que pareça ir contra a idéia de mudança contínua, também pode ser reinterpretado de acordo com o texto acima, bastando que para isso nós pensemos no plano e na escarpa: qual caminho traz mais benefícios a humanidade? O do senso comum ou o da filosofia e da arte? Um invalida tudo ao equalizar os conhecimentos. O outro permite as mais variadas perspectivas, altas e baixas, sempre efetivamente diferentes e verdadeiramente válidas.

Thursday, May 13, 2010

Poema sobre a linha do tempo

No momento presente
O futuro está sempre
sem pressa
sem pressa

Alvorada perpétua
é tua rotina,
Senhora
Da hora

D'agora
Sem hora
sem pressa
sempre.

melhor me parece
não ter rotina
nem presente nem futuro:
contar com a memória

não viver no passado
mas fazer o passado.

viste que acabei de fazer o que ja no presente segue futuro a dentro?
patata patata patata
e segue sempre sem piedade o passado
a construir sobre meus sonhos
o palácio para meu presente.

futuro é pedra e eu sou água
futuro é vazio e passado é forma
presente sou eu recortando.

O futuro que não existe só

Carta a M. Lannes

Resposta a http://ponteiroapontado.blogspot.com/2010/03/carta-f-negreiros.html




***




Bravíssimo,

Ando a procura de uma apóstrofe razoável para ti meu amigo, há muito, e me regozijo de ver que meu sistema ortográfico automático não o reconhece a palavra encontrada. Tenho certeza de que ela existe, mas o sistema não reconhece. Não é uma metáfora linda? Infelizmente, a apresentação formal desta carta será descaracterizada desta minúcia contextual em que tal apóstrofe foi gerada. Isso, contudo, não interfere em nada no conteúdo original da carta que, originalmente, tinha a intenção de escrever. Segue a partir de agora sem mais interrupções (embora eu me pergunte se uma interrupção entre a apóstrofe e o conteúdo do que se queria dizer ao apostrofado seja mesmo uma interrupção) a carta que originalmente queria escrever-lhe.

Seja. Minha vida, agora, como já disse anteriormente, anda calma. Tenho tido muito tempo para pensar, mas penso que ainda estão por chegar os frutos desse esforço. Já vejo folhas resplandecentes esticarem-se para o sol de uma calma e liberdade ampliadas, e uma direção já se me mostra mais ou menos nítida a respeito do que buscar. A sua narrativa autobiográfica será um tesouro que guardarei na parte mais segura da minha memória, senão o seu conteúdo textual, pelo menos a sensação indescritível que me deixou. Sensação de grande importância para a minha própria reflexão. É algo como um refinamento dos conselhos morais que recebemos das pessoas com mais experiência. Falo em 'conselhos morais' por haver em sua história um conselho, mas gostaria exatamente de precisar esta diferença entre um conselho de experiência, e este que deixa apenas a sensação vaga, mas intensa, de seu ensinamento. Mas antes, para que não me chamem de prepotente juvenil, convém explicar o que entendo por 'conselhos morais' ou 'conselhos de experiência'.

Suponho que todas as épocas tiveram seus tiranos, seus rebeldes, seus miseráveis e, até mesmo no auge da civilização (e talvez principalmente aí) escravos. O que se conclui disso é que tiranos, rebeldes, miseráveis e escravos, além de outros adjetivos que poderiam preencher mil páginas, são condições de existência da própria humanidade, ou, para não falar em termos tão gerais, da sociedade. Esta suposição, que derruba qualquer hipótese utópica, não pode ser mais verdadeira, entretanto, nas condições de jovens e velhos. Isto pelo simples fato de esta condição ser, bem mais nitidamente do que a de tirano ou miserável, imposta pela natureza. Além disso, e ao contrário de todas as outras, passa-se obrigatoriamente de uma condição para outra ao longo da vida (a não ser em caso de morte prematura, em que a palavra utilizada para designá-la já implica que morreu antes de maturar). A suposição - segundo a qual assim como a juventude e a velhice são impostas pela natureza ao indivíduo, o tirano e o mendigo são impostos pela natureza à sociedade - torna-se reveladora quando notamos a tendência tirânica dos adultos, a rebeldia dos jovens e a miséria dos velhos, todos tendo, inclusive, se motivando reciprocamente. Veja: um jovem rebela-se por achar-se submisso ao adulto que permite a miséria no mundo (leiam-se as revoltas estudantis do tempo de ditadura, ou a revolução burguesa do século XVIII, ou os golpes de estado em geral, da época das grandes dinastias...); Um senhor de respeito exige ser tratado da forma que lhe é devida pelos jovens mais inexperientes, uma vez que só ele - e tem a convicção disso - pode acabar com a miséria do mundo. O velho miserável, a não ser quando tem a chance de viver em espírito - um dom concedido àqueles que, de uma forma ou de outra, transcendem - em qualquer outra situação simplesmente padece impotente.

Claro que toda generalização contem falhas, mas a vista dessa perspectiva mais abrangente, que elimina as situações excepcionais, cria a ilusão de que a natureza controla todas as nossas decisões sociais através da sucessão de poder dos nossos discursos. Funcionaria como uma rotatividade do poder, que desta perspectiva, é tão hereditária quanto a mais severa dinastia. Ele se renova ao ser derrubado, mas à medida que envelhece, corrompe-se, deteriora-se, enquanto a juventude, que vigora, chega para suplantá-lo. Eu me reconheço como um jovem, e é por isso que estou falando disto tudo, para voltar ao assunto dos 'conselhos morais' ou 'conselhos de experiência'. Eu queria dizer que os conselhos morais são dados por pessoas cujo conhecimento se baseia num passado repetido e, em algumas hipóteses, em um passado construído por eles mesmos. Esses conselhos são dados tendo em vista um futuro previsível (embora a minha suposição generalista indique necessariamente os dois únicos futuros derradeiros: a vida espiritual ou a miséria e o esquecimento) e valem dentro deste mundo pré-conhecido ou mesmo pré-concebido - não pela natureza, como se poderia pensar, mas pelos adultos. Valem dentro deste mundo, aliás, que provavelmente foi concebido durante a própria juventude desses mesmos adultos tirânicos. A natureza só cria a dinâmica intrínseca da humanidade, assim como criou a de todos os outros seres vivos. Mas esta visão interna que nós temos, e esse dom maravilhoso que é a capacidade de se olhar para dentro e pensar, torna possível a vida espiritual, e a consciência desta vida espiritual torna obrigatória a sua busca, caso contrário não se tomou consciência dela.

Falando de uma vida espiritual, é muito fácil confundir-me com um pregador religioso, mas tu bem sabes qual é a minha opinião a respeito de um Deus personificado. Bergson utilizou a palavra 'Deus' apenas uma vez em seu livro, pelo menos até o ponto em que cheguei. Eu me lembro perfeitamente da frase, embora seja difícil explicar o contexto inteiro, mas o que ele diz é que "... Deus imaginado desta forma não tem nada de pronto. É indeterminação pura. (...)". Eu sei que, para ti, não preciso explicitar essas coisas, por isso basta-me deixar aqui esta citação e, caso o termo 'vida espiritual' possa suscitar idéias errôneas, Bergson poderá resolvê-las.

A busca desta vida espiritual representa, portanto, o grande objetivo da vida de um homem que se liberta das amarras da maior tirania que existe, a da própria natureza, evitando, inclusive, tornar-se um adulto tirânico e um velho miserável. É por isso que seu conselho, a que vou fazer menção textual para que não haja dúvidas, tem mais o caráter de um conselho de espírito do que qualquer outro. É o conselho que revela uma descoberta pessoal, uma novidade universal, por assim dizer. É algo de que qualquer pessoa com aptidão para tal poderia usufruir. Não é como os valores naturalmente estipulados e infinitamente recortados pelas morais sociais, os conselhos morais, indicações de um padrão comportamental ou algo destinado a me dar vantagens neste mundo absurdo da civilização contemporânea, mas sim uma pequena luz através de uma pequena porta, que leva a um belo jardim desconhecido!

"Sempre que tiver entediado, ou triste, ou qualquer coisa parecida, vá pra rua sozinho, sente em um lugar movimentado, onde outras pessoas irão conversar e fique apenas escutando e criando a história da vida delas. Isso é fantástico, isso ameniza qualquer tristeza."

Simplesmente isso é que é o seu conselho. Imaginei que não te lembrasses bem dele, pois não passa, no fundo, de uma forma de falar, um recurso literário para abordar de um outro ângulo o assunto em questão, que é a cenarização. Afinal de contas, quem faz um conselho abstêm-se completamente da responsabilidade de tê-lo feito. Um conselho é só um conselho e ninguém é obrigado a segui-lo, certo? Duvido muito, como você faz menção em seguida ao conselho, que um jovem qualquer seria capaz de ultrapassar sequer a barreira lingüística de modo a entender o que significa a totalidade da nossa correspondência. Mesmo assim, por muitos que sejam os obstáculos para a compreensão dessas idéias, quero crer que, por um magnetismo espiritual, vamos um dia encontrar, espalhados pelo mundo ou dormindo em uma casa vizinha - que seja - indivíduos que perceberam a beleza do mundo natural e a natureza particular do homem, e nela, a sua própria beleza. E juntos poderemos descobrir coisas novas até um dia transcendermos ao ponto de tocar mesmo a massa adormecida das pessoas com a nossa Arte. Enquanto não encontramos nossos irmãos de espírito, teremos sempre a nós mesmos, e consciência disso, para nos divertir e brincar com o resto do mundo, como se fosse o nosso jardim secreto.

Quanto à biblioteca de babel, não consigo mais avançar no projeto sem a ajuda de um bom programador.

Minha mão já pesa sobre o teclado e, na certeza de escrever em breve, limito minha remessa a este ponto. Desejo as mais belas felicidades a senhora Lannes, e a ti.

Do sempre e muito seu,
F. Negreiros

Thursday, May 06, 2010

Carta a M. Lannes

resposta a http://ponteiroapontado.blogspot.com/2010/04/pequena-carta-f-negreiros.html

Caríssimo,

Acho que não há dúvidas sobre o que representa o esporte nos dias de hoje, de acordo com a argumentação básica, por assim dizer, da Sociedade do Espetáculo: a inversão pela imagem do que a prática verdadeira do esporte representa. Pura e simplesmente, a massa hipnotizada prefere assistir a todos os campeonatos de que nunca fará parte, nem sequer terá algum dia capacidade de extensão, a ir praticar ela mesma esses esportes. Caso me proponham que uma torcida organizada representa a extensão de uma individualidade ao coletivo, a amplificação de uma característica comum através da união, eu contra-argumento precisamente com o pannis et circem: a pseudo-extensão de uma individualidade acaba se tornando a supressão de toda individualidade. Não me faltam argumentos contra a exploração espetacular do esporte nos dias de hoje, e não vou entrar neste mérito. Não vale a pena comentar a negativa da pseudo-união representada pela torcida, que é a divisão clara da sociedade entre torcidas prontas para se digladiar, até porque, isto é muito mais uma conseqüência dos esforços alienadores do espetáculo do que sua verdadeira intenção. Da mesma forma, não vale a pena questionar aqui a máfia de influência que toda a movimentação esportiva de alta competição gera - principalmente no meio futebolístico, que é, ao que parece, o esporte escolhido para a grande sociedade mundial.

Entretanto, a importância que o esporte ocupa e sempre ocupou na sociedade apenas se comprova quando nos damos conta de quão poderosa máquina de controle ela pode se tornar. Vejo uma relação muito estreita entre o grande artista e o grande atleta. Da mesma forma, poderíamos estabelecer um paralelo entre o time e a banda. De ambas as analogias tiramos grande proveito. Primeiro identificamos o que deve ser o objetivo final de um atleta ao compará-lo com o artista: não a superação dos outros, mas a superação de si mesmo. A prática levada à perfeição. Da mesma forma, vemos na banda algo mais do que um conjunto de bons músicos. A afinação (lato senso, por favor) entre eles é o que realmente vai trazer algo de interessante para a musica que toquem juntos.

Considerando, por sua vez, a filosofia do mito, diria que a jornada de um caçador tem muito de esportivo. A guerra, grande produtora de heróis, também. Os atributos físicos sempre foram valorizados por esses motivos: caça e guerra. Os esportes, por mais sofisticados que se encontrem no nosso tempo, sempre representam uma simulação de combate ou de caça. Seria, portanto, através dos esportes que o homem civilizado se manteria em contato com seus primórdios animais. Afinal, não é a toa que a arte e o esporte estejam ligados. Os dois representam conexões com esse primórdio.

Gostaria de mudar de assunto agora, mesmo que esta pergunta esteja ainda longe de ser respondida, para primeiro me desculpar pelo tempo de silêncio literário, e em seguida fazer alguns comentários a acontecimentos recentes na minha vida sobre os quais tenho certeza de que você terá interesse.

Finalmente tenho tempo. Cheguei esta semana a Humanhá, onde a casa antiga de paredes grossas estava, finalmente, vazia. O proprietário livrou-se depois de vários dias de atraso, dos móveis que impediam a minha instalação no local de retiro. Agora, olhando pela janela e apreciando a vista para dentro da floresta, a 'casa do mago' ao longe, e o trem que passa de quando em quando, inspiro com calma, como se o próprio Tempo entrasse pelos meus pulmões e se diluísse como açúcar em copo de água.

Espero poder escrever com mais assiduidade nos próximos meses.

Como pretendo ter mais tempo para escrever nos dias que se seguem, peço paciência. Pode parecer contraditório, mas acho que entenderás bem o sentido desta contradição - de pedir paciência quando me encontro em condições de escrever mais. Em breve terminarei a minha próxima carta, não como uma continuação desta, mas como uma resposta à anterior.

Até breve,
F. Negreiros

Friday, February 26, 2010

Carta a M. Lannes de ponteiroapontado.blogspot.com

resposta a http://ponteiroapontado.blogspot.com/2010/01/carta-f-negreiros.html


A vantagem de conversar por escrito é que podemos mudar de assunto à vontade, e ao mesmo tempo, esse assunto encerrado de forma violenta, permanece aberto para ser continuado paralelamente. Talvez o mais difícil na compreensão de certos textos seja a percepção de mudança de um assunto para o outro, quando são assuntos muito similares. As vezes, achar que se está tratando da irrealidade real do mundo, quando já se está falando de como poderemos nos encontrar em breve, leva a terríveis mal entendidos.

Claro que isso foi uma piada, mas foi para dizer que vou responder à sua carta de acordo com os tópicos, na ordem em que foram apresentados, e espero não negligenciar, por incapacidade de percebe-la, nenhuma questão.

Encontro nas suas palavras, luzes de Henry Miller que projetam suas formas na minha leitura atual, Guy Debore. Ele descreve a sociedade atual como a do espetáculo, em que a imagem substitui a realidade. Em seu livro, usa argumentos muito mais apresentáveis, digamos assim, do que os de Henry Miller. Faz um trabalho de referencia histórica incrível, e em seu discurso, também se aproxima dos atuais documentários revolucionários (que parecem ser a mais moderna ferramenta de contestação, ocupando o lugar dos jornais, panfletos e livros proibidos das tirânicas décadas de totalitarismo).

Mudando de assunto...

A ferramenta de busca é que seria o escritor no caso de conseguirmos criar a Biblioteca de Babel virtual. No meu sonho, a Biblioteca estaria construída em secções hexagonais e com grandes escadarias pelas quais infinitos níveis poderiam ser acedidos, exatamente como descreveu Borges, e estaria construída em uma plataforma gráfica 3D, de tal forma que a cada nova secção hexagonal que o bibliotecário virtual entrasse (isto é, eu ou você), os livros presentes neste local seriam gerados. Basicamente, a vantagem de um ambiente virtual, é que ele não precisa existir todo ao mesmo tempo, mesmo virtualmente. Bastam alguns segundos de loading para que um novo hexágono se forme. Paralelamente a isso, podemos mandar vir à nós, ou mandar preencher o hexágono, todos os livros que contenham uma certa combinação de caracteres. Isso é uma ferramenta cujas possibilidades eu sequer consigo imaginar. O grande jogo seria brincar com a configuração do motor de busca. Poderíamos dar um nome para ele, e se, como no meu sonho, a biblioteca for erguida tridimencionalmente em um ambiente virtual, até mesmo uma constituição física ele pode ter. Uma aparência. Seria muito interessante!

Mas não vou tão longe. A princípio, algo no modelo da página do Google, com um campo de buscas, um botão de “procurar” outro de “estou com sorte” embaixo, que fosse capaz de chafurdar nos zeros e uns para nos trazer todas as combinações alfabéticas possíveis em uma certa ordem, seria o máximo.

Falar sobre a subtileza é uma metalinguagem inversa: Dessubtiliza a palavra.

Senhor dos anéis não é auto biográfico!!!!!!!!!!! Nem é metáfora para a segunda guerra mundial!!!!!!!!!!! E eu sei que você disse isso só pra me irritar!!!!!!!!!!!
Você sabe muito bem: só pelo fato de o Tolkien ter passado um tempo nas trincheiras, e, durante uma enfermidade, começado a escrever sua grande obra, e que mesmo que a inspiração para descrever uma guerra tenha vindo do ambiente político em que a Europa e o mundo se encontravam, e do próprio ambiente físico em que se encontrava, não se pode afirmar nada. Ao ler e descobrir as escalas maiores da mitologia tolkeniana, além das origens universitárias deste mundo (ele começou a desenvolver os mitos e lendas que depois dariam forma a Arda e a Terra Média, quando cursava Filologia, para dar um pano de fundo às línguas que criava. Como filólogo, ele descobriu que uma língua não pode existir sem um povo que a fale - e é por isso que o esperanto não funciona, por sinal), fica nítido que não há nada de autobiográfico ou metafórico em relação a coisas ou um estado de coisas presente no mundo real. HUMPFFF!!!

Interessante que não havia tanto para falar sobre o numero de páginas, e ainda assim foi um dos assuntos que mais rendeu em sua carta. Mas rendeu para bem, e achei ótimo o comentário de Sabino.

Não vou comentar tudo da sua carta, por que algumas das coisas que você me disse são respostas em si, mesmo que não houvesse pergunta a elas.

De resto, vale dizer que tenho viajado muito. Não exatamente por este motivo, mas de certa forma estando relacionado, não tenho tido muito tempo para sentar e pensar bem a respeito do que escrever, senão para te responder. Não quero comentar Henry Miller nem Saramago aqui. Estou lendo outras coisas agora (que já citei, mas não cheguei a comentar como deveria) e não se comenta esses autores assim, como quem fala de um filmeco interessantezinho. Poderia até faze-lo. Não chego a considerar uma tarefa impossível ou a qual eu invariavelmente rejeitaria, mas não hoje, não agora, e talvez, nunca.

Vou perguntar algumas coisas, ao invés...

Até que ponto vai o seu desejo de não querer nada, manifestado repetidamente em contos e poemas? A busca do seu Eu Lírico pela ausência de sentidos, seria, paradoxalmente, uma busca pela essência da sensação? Ou a sensação das coisas está no mesmo nível de repulsa quanto a percepção do sentido delas?

A responsabilidade individual sobre a situação geral das coisas pesa minimamente sobre as decisões dos seus atos? Quer dizer, é óbvio que o mercado financeiro é um dos principais causadores da discrepância financeira que existe no mundo, pois possibilita que o dinheiro se multiplique sem que haja uma produção relativa a ele. O seu raciocínio já o tinha levado a isso, e lendo Miller, o impulso de largar tudo em prol da coerência e liberdade individual assalta qualquer mente. Mesmo assim, você gosta do que faz, e não parece se preocupar de verdade com o fato de estar contribuindo ativamente para a sofisticação deste sistema. Eu mesmo detesto estar envolvido com um órgão publico, que é outra das facetas do espetáculo, uma vez que é completamente inútil (não tanto pelo que se presta a fazer, mas pela ineficiência da máquina governamental em geral), mas o seu trabalho é, segundo a sua descrição, tornar mais rápidas as transações, ou seja, você afia os dentes da besta, enquanto que eu apenas sigo na corrente sanguínea o mais inerte possível. Além disso, você parece trabalhar muito mais do que gostaria, enquanto que eu me esforço por me esforçar o mínimo possível e consigo. Isso traz suas compensações, até mesmo do ponto de vista da consciência moral. E quanto a você? Como cabe na sua cabeça a contradição entre saber estar contribuindo para algo negativo e usufruir disso? É algo como a minha própria amoralização do ato de comprar certas coisas (que “contribuem para a violência”)?

Na primeira tarja preta, um Johandson fala que pelo raciocínio que leva a deduzir que a compra destes produtos é imoral por dar dinheiro para os filhos da puta, também pode ser usado para não pagar impostos, já que o dinheiro contribui para coisas que nós não queremos (ele cita a má distribuição dos investimentos que causa segregação que causa a violência, isso sem falar no dinheiro que vai diretamente para a violência, na forma de armas de combate ao tráfico).

Mas isso foi só um parênteses. A minha dúvida é mais em relação à sua ideologia quanto ao estado do Mercado Mundial e a dominação proveniente dele.

Quero muito saber quais são os outros assuntos que você não mencionou. Espero que não tenha esquecido deles!

Abraços!
Fernando Negreiros

Sunday, January 03, 2010

Natal. Grandes merdas. Nem sequer os puteiros estão funcionando. Quando imagino o que estarão fazendo as putas, sinto algo parecido com vontade de rir. Não importa se estão com um cliente ou com uma família, são todos loucos, clientes natalinos ou famílias de putas. O mercado do sexo não pára nunca e eu sei que algo deve estar aberto. Já fui à Downey Road, onde costumam haver algumas vagabundas dando nas calçadas, mas com este frio, claro que só encontrei uns mendigos congelados. Depois desci para as docas, mas com as discotecas fechadas, também fecharam os motéis. Fui subindo de nível. Quanto mais próximo da Sunrise Av., mais caras as putas. Mas hey!, é natal! Época de nos darmos presentes, e eu sou minha própria família. Tenho direito ao melhor presente, já que sou filho único! Market Street, President Gump street, Westside Hills, tudo vazio. Se continuar assim vou acabar falido! Será que tinha como ficar pior? A tempestade de neve molhada mão perdoa a cidade, caindo em gotas que são verdadeiras bolas de gelo, granadas explodindo ao atingir o capô do meu Chevet ’77.

Talvez não tenha sido uma boa idéia vir procurar prostitutas numa data tão especial. Especial não pelo significado, claro. Estou-me nas tintas para Baby Jesus. Mas ao passar pelas ruas chiques do Uptown, e ver as luzes nas janelas festivamente decoradas dos lofts milionários que margeiam a estrada, um enjôo mais revoltoso que o normal toma conta das minhas tripas. Não que eu realmente me importe com as condições de vida das pessoas em geral, mas não consigo deixar de pensar no sangue frio com que esses figurões fazem circular o dinheiro entre si, dando jóias para as virgens e carros para os moleques, perfumes e esculturas, aquelas peças de design decorativas sem nenhuma utilidade, mais caras que o meu cu, trocando tudo entre si, à custa da miséria que reina fora de suas fortalezas de crédito. E ainda são capazes de sustentar veementemente a beleza do espírito natalino. Dar e receber. Grandes Merdas. Quero ver o que eles dariam em troca da chance de continuar vivendo. Sério mesmo. Queria pegar um cara desses e apontar-lhe uma arma na cara, dizer ‘feliz natal’ e mandá-lo fechar os olhos antes de atirar para cima. Poderia fazer isso mil vezes e a minha diversão seria apostar quais deles se cagariam, quais mijariam, e quais morreriam ali mesmo, de susto! Esse é o meu presente de natal para esses bundões: não mata-los. Haha... “feliz natal, você está vivo bundão”. Ano que vem vou colocar isso escrito no pára-choques.

Finalmente, alguma esperança. Sunrise St. nunca dorme. Os dois seguranças da casa também não. Estaciono. Caminho lentamente sem me importar com a chuva que pesa sobre meus ombros. Uma pessoa familiar entra no motel. Uma pessoa familiar? Mas meus familiares estão mortos. Amigos, se é que os tive, estão agora comendo grama pela raiz.

Essa chuva me faz lembrar. É como se tivesse bêbado. Mais do que já estou.

(Que merda, preciso dar um gole antes que as lágrimas venham-me aos olhos por outro motivo que não seja a ardência da vodka vagabunda na garganta.)

Estava chovendo assim naquele dia.

Chuck, Dave, e Joe-Joe Rebatedor eram pessoas boas. Eram perfeitamente coerentes. Amigos, até certo ponto. Acho que se não tenho amigos agora, não os tinha antes. Não foi a morte dos três rapazes que me fez como sou. Muito pelo contrário. Eles eram as únicas pessoas em quem eu confiava, por serem, dentro de sua coerência, a justificativa perfeita para os meus próprios vícios. Pelo menos eram pessoas que eu conhecia o suficiente para poder reconhecer os padrões morais. Ninguém é bom, nem mau. Apenas tem vícios mais, ou menos doentios. Mesmo em uma época como a nossa, acredito que ninguém faz algo que saiba ser malévolo, sem terminar por encontrar em si mesmo o juiz e o carrasco. O que mais me irrita numa pessoa, é falta de coerência. Normalmente, não demoro muito para perceber o modo como alguém age. Posso imaginar perfeitamente o fariam se achassem uma carteira cheia de dinheiro na rua, ou se vissem uma velhinha sendo assaltada. Ou em situações mais delicadas como criar um filho ou dar o cu. Isso também. Identifico um homem que gosta de dar a bunda no momento em que ele começa a falar. Mas é um tino meu que não vem ao caso. O que eu ia dizendo: não há coisa que me desestabilize mais do que uma pessoa incoerente. Pessoas como Eva.

Eva, com sua castidade provocante e malícia tão bem disfarçada de ingenuidade, desde quando chegou ao meu pequeno escritório de advocacia em New Gate, até hoje, é um mistério para mim. Precisava dos meus serviços sujos. “As pessoas precisam de advogados não para lhes dizer o que podem e o que não podem fazer, mas sim para lhes dizer como fazer o que querem fazer”. Pelo menos este é o perfil dos meus clientes. Eva não se encaixava neste perfil. Ela parecia desconfortável com a idéia de estar fazendo uma coisa tão suja. Talvez se não tivesse chorado eu fosse capaz de perceber que havia alguma coisa de errado com o fato de alguém que aparentava uma pureza espiritual tão grande, estar me contratando para o caso mais sujo em que já trabalhei. Eu sou muito bom para perceber intenções obscuras, mas Eva era pior do que ininteligível. Era enganadora. Via uma garotinha indefesa em um corpo de manequim. Vi apenas a perfeição de suas formas sem me tocar do óbvio pecado que o rondava. Enfim, apesar do meu olfato apurado, senti apenas o perfume Dolce & Gabana e não o cheiro de morte que emanava da mulher fatal.

Chuck, Dave e Joe Joe Rebatedor. Meus amigos, ou companheiros, ou parceiros. Não sei e já não importa, por que já não são nada. Estão tão mortos quanto eu, com a exceção de que eu ainda posso andar e sofrer. O primeiro me ajudava com as causas e com as drogas. Era incrivelmente inteligente, apesar da cara de paspalho. Tinha contatos em toda a cidade e podia conseguir o que precisássemos em qualquer época do ano. Falava muito bem. Dizia que queria ser escritor, mas onde seu dom realmente se manifestava era no tribunal. Vi um professor que abusava das alunas ser absolvido em júri popular graças à sua lábia.

Dave e Joe-Joe Rebatedor faziam free lance para nós quando precisávamos. O primeiro era um nerdzinho que deu errado, perito em conseguir evidências que só poderiam ser conseguidas de forma imoral, isto é, grampeando telefones de suspeitos, fotografando encontros comprometedores e filmando transações corruptas. O segundo era um ex-policial que fora expulso do quadro por matar acidentalmente um meliante. Adorava bater nas pessoas e isso vinha muito a calhar em casos em que a única solução era silenciar testemunhas.

Eu me lembro como se estivesse bêbado. Mais do que já estou. Eva chorando no escritório vazio. A chuva torrencial. Nada mais natural do que oferecer um cigarro, um gole de vodka, um braço amigo e tudo o que disto naturalmente se desenrola. Ela não tinha sequer terminado de explicar o caso, ou talvez não tivesse sequer começado a explicar, quando já estava nua no sofá, contorcendo-se com os espasmos de prazer. Até hoje eu não sei quem fodeu quem aquela noite. Mas na hora, eu não pensava em nada. Nada mesmo. A puta conseguiu esvaziar-me de espírito completamente. Passei o resto de noite fumando um cigarro e olhando para a chuva, exatamente como estou fazendo agora, enquanto ela dormia. Linda.

Eva era filha de Louis Conccavo. Dentre os muitos negócios geridos pela sua família, estava o contrabando de drogas. Eva precisava de mim para processá-lo de alguma forma. Era fácil demais. O homem estava afundado em merda. Tinha muito dinheiro e isso o mantinha longe dos tribunais. Eva queria que eu encontrasse uma brecha que nem mesmo o dinheiro seria capaz de cobrir. Eu fiquei muito orgulhoso com a solução que encontrei. O único crime que o estado não perdoa: sonegação do imposto de renda.

Pensando melhor, acho que houve momentos em que a chuva deve ter parado. Não é possível uma chuva torrencial, com bolas de neve e gelo gigantes, durar mais do que três dias. Mas isso é apenas uma conclusão racional e quase especulativa a respeito do passado. Baseado na minha memória, sem me deixar levar por devaneios lógicos, afirmo com toda a certeza: estava chovendo o tempo todo. Tenho certeza disto, por que era mais ou menos a desculpa utilizada por Eva para não sair nunca de minha casa. Durante os interrogatórios, nos quais Joe Joe Rebatedor cumpria uma função crucial; durante as longas horas de tediosa atenção à escuta instalada por Dave; durante os colóquios com Chuck, em que discutíamos a abordagem ao caso; enfim, durante toda a semana que durou a investigação, não parou de chover, e Eva não saiu de minha casa.

Tenho que admitir: cada noite que passamos juntos valeu por toda a minha vida. Essa puta. Eu ainda a amo, e a perdoaria, se fosse possível.

Chuck tinha a solução para tudo. Guiou o processo todo. Por que será que ele se entregou com tanta vontade a este caso, eu não entendo. Redigiu o texto de acusação, em que demonstrava o dolo na omissão de pagamento dos impostos. Conseguiu fazer parecer com que fosse o pior dos crimes cometidos por Conccavo. Mas fui eu que assinei. Como fui burro. Como fui cego!

O que tinha em mente, é que caso o Louis fosse preso, Eva Conccavo iria ficar livre, e não seria difícil, por meios legais, tomar posse do império de seu pai. Ele apodreceria na prisão à medida que fossemos, gradativamente, incluindo em sua ficha penal, as acusações de extorsão, chantagem, assassinato e tortura, que já pendiam sobre seu pescoço, e apenas não caíam por causa do império financeiro sobre o qual estava deitado no momento. Bastava que fosse preso, e todos os benefícios de suas empresas de lavagem de dinheiro, por onde circulavam milhões de dólares imundos, passariam para as mãos de Eva. E eu pensava tê-la em minhas mãos.

Agora a história se torna inacreditável, mas é assim que se configuram todas as cenas na minha cabeça: O tribunal, a chuva, as trinta e sete horas de deliberação, a chuva, a ausência repentina de Chuck, a chuva. A chuva não parou um segundo. Lembro-me como se estivesse bêbado, de andar pelos corredores do tribunal, sem entender o que estava acontecendo. Muitos filhos das putas estavam presentes. Parecia que um peido fora do lugar poderia desencadear um tiroteio. Antigos clientes meus, que me deviam a sua liberdade, estavam acompanhando o acontecimento. Não por lealdade, nunca, mas sim pelo fato de serem associados de Conccavo. O Réu não perdia a pose. Usava um bigode farto, grisalho, cabelos ainda volumosos, apesar da idade, e as rugas eram imponentes, marcadas na testa de tal forma que esta parecia estar sempre contraída, em intensa atividade cerebral. Jurava com a mão na bíblia e mentia descaradamente, às vezes despropositadamente. Se fosse júri popular, ele estaria solto, graças à capacidade argumentativa da ameaça às famílias e amigos. Essa era a grande vantagem de incriminá-lo por sonegação de impostos: um juiz soberano e implacável, mais sedento por vê-lo atrás das grades do que qualquer um no local.

Foi nos últimos momentos do julgamento que Chuck desapareceu. Procurei em vão por todo o fórum. A sentença, seis anos de prisão, não me alegrou. O desaparecimento de meu parceiro era muito preocupante. Foi só então que comecei a pensar nas conseqüências de meus atos. Iríamos ser perseguidos para o resto das nossas vidas até que Louis Conccavo tivesse sua vingança. Eva, com malícia, com carícias, me cegara para o fato óbvio: movimentar um processo contra seu pai era suicídio. Mas ainda não tinha tudo claro na minha cabeça. Meu primeiro instinto ao me dar conta de que Chuck sumira, foi ligar para o escritório. Dave atendeu. Estava de prontidão, para o caso de precisarmos de algum tipo de ajudar fora do Fórum, durante todo o processo. Antes de dar as boas noticias (a sentença, que no fundo era a causa das más notícias), dei as más: Chuck não estava em lugar algum; ia ser difícil sair vivo do tribunal; estávamos todos na mira dos Conccavos; e o mais importante, Eva estava em perigo. Na minha cabeça, ainda não estava claro quem ela era. A mulher que me matou, matou Chuck, matou Dave, e matou Joe Joe Rebatedor. Naquele momento, ainda me preocupava com ela. O amor é burro e eu amava. Ainda amo, mas agora sei que ela não está em perigo, nem nunca esteve.

Ia pedir a Dave que chamasse Joe Joe Rebatedor, e que fosse com ele à minha casa, protegê-la. A chuva caía forte e barulhenta. Havia ruído na ligação. Eu estava confuso e a conversa com Dave durou uma eternidade e terminou antes de terminar: o inconfundível barulho de uma porta sendo arrombada com um chute, tiros, gritos. Depois passos e a mudez mortal do telefone desligado. Com certeza Dave estava no pior lugar para se estar no momento do decreto de prisão de Louis Conccavo: no meu escritório. Era só questão de tempo até que chegassem a meu apartamento, ou talvez o mesmo estivesse a acontecer simultaneamente nos dois lugares. Eva estava em perigo.

Lembro de dar um grande trago de vodka, a última vodka de boa qualidade que tomei desde então, e também a mais amarga. Eva estava em perigo, Chuck deveria estar em sérias dificuldades, Dave – Morto! Mais um gole. A garrafa está quase no fim. A chuva está mais forte do que nunca. O próximo a morrer é Joe Joe Rebatedor. Tentei ligar para ele, mas acabaram as minhas moedas. Tinha um rolo de notas de cem enfiadas dentro da cueca, como sempre, mas não tinha onde trocá-las. Destravei a minha pistola. Sabia o que vinha pela frente.

Felizmente, todo bom advogado conhece as saídas discretas dos Tribunais. Havia um beco que dava acesso à rua de trás. Lá havia também a porta dos fundos de um restaurante, onde era freqüente estar algum garçom ou cozinheiro fumando um cigarro. Dentro do tribunal eu estava seguro, mas se fosse visto a sair, seguramente teria meus passos contados, até que uma bala viesse dar bem na minha cabeça. Tranquei-me no banheiro e esperei, observando pelos tijolos vazados que ficavam à altura dos olhos de quem estivesse de pé na privada, até o momento em que vieram dois dos homens do restaurante. Era minha deixa.

Atravessei a multidão na nave central do Fórum, cobrindo a face com o chapéu. Se alguém me perguntar por que os advogados se vestem todos da mesma forma, a resposta será: “para situações como esta”. Se alguém me viu, não me reconheceu. Consegui escapulir para a sala de manutenção, onde os cabos dos elevadores subiam e desciam, e de onde se podia chegar às escadas de incêndio, que levavam ao beco, onde ainda estavam fumando os garçons. Tirei uma nota de Cem da cueca. Ao passar pelos dois, deixei-a cair bem visivelmente em frente a eles. Espero que não se tenham matado entre si. Cinqüenta reais para cada um estavam de bom tamanho para que me deixassem passar. Antes que a porta se fechasse atrás de mim, recomendei que fossem irmãos na divisão, e que não gastassem tudo em doces. É incrível como consegui ser sarcástico na situação em que me encontrava, mas é mais forte do que eu. Ao mesmo tempo em que sofria pela possibilidade de chegar a casa e encontrar a mulher morta, estava contente com a minha própria astúcia. Passei pela cozinha, depois pela grande despensa com os vinhos e as carnes temperadas, quase cedi à tentação de levar uma garrafa comigo, dentro da gabardine, mas não tive tanta presença de espírito. Adentrei em passos rápidos o grande salão de jantar, onde um pianista levava um standard de jazz qualquer, e alguns casais dançavam.

Foi também a última vez que estive em um lugar como esse. Antigamente, costumávamos ir os quatro, eu, Chuck, Dave, e Joe Joe Rebatedor, para o after hour neste mesmo lugar. Bebíamos como loucos e sempre quebrávamos mais taças do que o total utilizado. Algumas das putas eu conhecia. Mas desta vez era diferente, e eu não podia flertar. Algumas eram da rede de Conccavo!

Tudo saiu como esperado. No restaurante não me incomodaram, mesmo que tenham reconhecido. Do lado de fora, pude ver com facilidade, os vários capangas esperando, em motos, alguns dentro de carros, até um furgão parecia estrategicamente localizado. Reconheci também um policial corrupto que conseguiu manter o nome limpo graças ao meu trabalho e ao dinheiro de Conccavo. Naturalmente, o sentimento de retribuição não tinha voz perante o poder sedutor do dinheiro, ou antes, o instinto de auto preservação. Eu era um merda, Conccavo era simplesmente o motor que fazia girar as rodas da cidade.

Mas, como uma sombra, me esgueirei do restaurante até o Chevet ’77, passando mesmo a alguns metros de um dos capangas que se protegia da chuva do lado oposto ao Tribunal, sem tirar os olhos dos degraus de mármore da imponente construção. Ninguém me viu.

Arranquei, para a surpresa dos meus perseguidores. Acelerei o mais rápido possível, fazendo queimar o pneu, e lançando uma nuvem de vapor ao redor das rodas. Virei à esquerda, para onde sabia haver uma encruzilhada. Quebrei rapidamente no sentido da Avenida Marginal, onde meu motor poderia fazer comer poeira qualquer um que tentasse me seguir. Se eu fosse pego, nunca teria a chance de salvar Eva das garras furiosas da sua própria família.

Ia a cento e cinqüenta quilômetros por hora, pensando nisto, refletindo sobre as sete noites em que possuí seu corpo, e antevendo a solidão que me esperava. Neste momento senti que perderia tudo se não voltasse a vê-la. Nunca imaginei, porém, que estivesse sendo traído. Será que foi por isso que me apaixonei por Eva? Por sua capacidade de trair sem que eu perceba? De esquivar-se da minha previsão e surpreender-me? Claro que não pensava nisto enquanto varava na tempestade na Avenida Marginal, tendo a praia e as ondas a estourar contra as rochas como paisagem. Naquele momento, eu amava verdadeiramente. Não sabia conscientemente, mas mesmo que escondesse de mim este sentimento inconsciente, sabia que era o mistério, presente desde o primeiro momento, que me atraía em Eva, e, portanto, a incerteza constante de ter meu amor correspondido.

Ao completar dez minutos de solidão na estrada – nem carros a seguir-me, nem carros a embarreirar a estrada – dei meia volta e segui o caminho até minha casa, que ficava muito perto do escritório, ambos perigosamente próximos do Fórum. Deveria haver uma tropa de choque a minha procura nas redondezas. Resolvi estacionar o Chevet ’77, que já estava visado, e me aproximar de casa pelo metrô. Estratégia de guerra: tenha sempre uma passagem subterrânea próxima da base, para o caso de ser necessária uma retirada de emergência. Misturado na multidão, camuflado pelos casacos, chapéus e guarda-chuvas, cheguei vivo. Resta saber se cheguei a tempo.

Entrada pelos fundos, escada de incêndio, o corredor escuro está iluminado pela luz de uma fresta. A porta está aberta. A porta da minha casa! O cheiro de morte. Dolcce & Gabana. “Ela está morta”, pensei e dei um gole de vodka com a mão esquerda, enquanto com a direita empunhava a Colt.

A porta range, a chuva cai, o silêncio barulhento do abandono, um mundo que cai. Não é Eva que está morta, mas Joe Joe Rebatedor, com um tiro certeiro na cabeça. Não havia sinais de luta. A porta não tinha sido arrombada. O perfume me torturava como uma risada macabra, os sete dias de paraíso transformados em sonho, e o sonho transformado em pesadelo, e a chuva, sempre a chuva. Desde então nunca parou de chover. Eva me traiu. Matou meus amigos, me deixou para pagar pelos meus pecados, nas mãos de todos os canalhas que libertei. Eu não era nada, uma peça em seu jogo. Uma mulher capaz de planejar um golpe destes contra o próprio pai certamente era capaz de tudo, e foi. Sua voz soava no perfume, seu cheiro dizia “todos os homens que cruzarem meu caminho sofrerão” e eu sofria mais, por não ser o único. Na verdade, eu ainda a amo.

Um gole de vodka, o último da vodka boa. A partir de então, minha vida virou uma fuga constante. Racionamento, redução das necessidades. Eu que antes tinha mais dinheiro do que podia gastar, agora já estava gasto, por mais dinheiro que tivesse. Tinha que estar sempre em movimento. Ainda dei alguns passos perdido pelos cômodos da minha antiga casa. Atordoado e perdido, perdido de tudo e de todos, não tinha mais destino. Os caçadores de recompensa, os cães da família, todos os mafiosos que deviam favores ao pai de minha amada, agora me procuravam e seria uma questão de tempo até que viessem à minha casa. Tive mais sorte do que Joe Joe Rebatedor, o pobre gorila com certeza tinha algum cérebro, e pela primeira vez na vida deve ter tomado uma boa atitude, ao vir voluntariamente em socorro da nossa traidora. Mas isso não era difícil de prever, ainda mais para mim, ainda mais para Joe Joe Rebatedor. Quem diria que sua recompensa seria uma bala na testa, vinda da própria mão que pretendia salvar.

Não me prolonguei muito com esses pensamentos. Depois de passar por cada quarto, de esvaziar a despensa em um saco (suprimentos), lembrar de pegar meu caderno de anotações, mas desistir da idéia (pra quê um morto precisa de um caderno de anotações?) e voltar finalmente à sala, onde jazia, com o taco ao lado, o cadáver corpulento de Joe Joe Rebatedor, me dei conta de que precisava me apressar. Quando alguém se dá conta de que deve se apressar, imediatamente o corpo se altera. Toda uma química secreta de glândulas e hormônios entra em atividade. Seu sangue se torna mais espesso, seus reflexos mais rápidos, seu sono mais leve. Desde que me dei conta, em minha casa, de que tenho de me apressar, nunca mais voltei ao estado normal. Isso é que é estar sempre em fuga.

A pressa justificou-se imediatamente. Passos na escada e o rangido característico do elevador (sabia, pelo hábito, que o elevador demoraria ainda 4 segundos para chegar ao meu andar) denunciaram a chegada de meus perseguidores. Seriam homens de Eva ou de Louis? Não importa. Podia ser até mesmo a polícia. Eu estava fodido à grande.

Rápido, a sacada! Dei um salto preciso e meus pés fixaram-se na sobra exterior da grade metálica. Para um advogado, eu sempre fui relativamente ágil. Fui para o apartamento vizinho, arrombei sem cerimônia a porta da varanda, e com alguma cerimônia corri pela sala. Desta vez, tive mais presença de espírito e passei na cozinha. Um Hermitage de La Chapelle veio muito bem a calhar. Disse que nunca mais bebi uma vodka boa, mas esta garrafa de vinho ainda me proporcionou grandes momentos na estrada.

Desci pelo elevador, como se fosse um morador comum. Em momentos como este, minha sensibilidade com as reações humanas, da qual já falei, se torna muito apurada. Podia imaginar precisamente os homens de Louis e os de Eva, mais a polícia, que alguma hora ia dar com o rastro de corpos deixado pela mulher veneno, se encontrando, nos lugares óbvios onde eu estaria sendo procurado, mas no prédio vizinho não me achariam. Meio eufórico, meio delirante, considerei até mesmo a hipótese de esperar para ver isso, o encontro entre esses bandidos. Os mal entendidos, os conflitos, as ameaças, as chantagens. Eu tinha sido a fagulha desta porra toda. Era um milagre não ter tido os mesmos destinos de Chuck, Dave e Joe Joe Rebatedor. Por isso mesmo, a euforia, e a sensação de confiança. Sentia-me protegido por uma força misteriosa, capaz de mover montanhas, mas não se chamava fé. Chamava-se ódio.

Mas não esperei. Não sei por quê. Não teria nada a perder, de qualquer forma. Desde que perdi Eva, não tenho nada a perder.

Lembro-me de caminhar até o metrô, que já estava menos movimentado. De voltar para a praia, onde tinha estacionado o carro. De fumar uns quantos cigarros.

Das ondas quebrando furiosas.

Da tempestade que até agora perdura.

Lembro-me de tudo...

(Que merda, preciso dar um gole antes que as lágrimas venham-me aos olhos por outro motivo que não seja a ardência da vodka vagabunda na garganta.)

Uma cara familiar. Está negociando alguma coisa com a cafetina.

Faz uma semana que voltei para esta cidade, depois de um ano sozinho, mergulhado na circulação sanguínea das urbes – as estradas. Minhas últimas economias serão suficientes para uma foda de qualidade, mas não sei como vou sobreviver ao Reveillon. Ainda tenho uma bala no tambor, que dei de presente para mim mesmo, no primeiro natal depois da morte dos meus camaradas. Joe-Joe Rebatedor, Dave e Chuck, que se não estiver morto, tem de estar muito mal das pernas, assim como eu. Talvez esteja na hora de usar meu auto-presente. Mas antes, às putas, pois o paspalho que pechinchava uma foda já conseguiu o desconto que queria. Quem será esta cara familiar que conseguiu algo que eu nunca imaginei possível?

– Henry?

Quem pode ser este estranho que me chama pelo nome?

– Chuck?

Vivo, mas fodido. Afinal, estava em um puteiro, no natal.

De repente, descubro que desaprendi a estar feliz, ou mesmo contente. O reencontro com o camarada, que eu pensava morto, não faz com que meu rosto se altere em nada. Nos olhamos por um tempo. Há apenas o barulho da chuva, o olhar desconfiado da cafetina, e o cheiro forte de perfume vagabundo do puteiro. Eu falo:

– Vamos conversar lá fora.

– Não. Tenho um desconto para aproveitar.

Chuck, apesar de extremamente convincente, é previsível. Gosta de dar o cu, mas não está pensando nisso neste momento. Está pensando em escapulir pela entrada de serviço. Eu farejo medo.

– Vamos conversar lá fora. – Insisto.

Desvia os olhos para a cafetina. Eu olho também. Ela parece prestes a tomar uma medida. Uma briga no natal é algo deveras desagradável, até mesmo no submundo.

– Não queremos causar nenhuma confusão. – Eu digo antes que Chuck possa tentar argumentar o que quer que seja. Prefiro não ter que usar a Colt, mas se ele se recusar a vir comigo, acho que vou enlouquecer. Mas meus músculos da cara não se contraem.

–Está certo. Vamos conversar lá fora.

Meu dedo pára de acariciar o cabo da pistola. Tiro a mão do bolso e pouso-a o mais amigavelmente que consigo, sobre a nuca de meu grande amigo, vivo afinal de contas. Vivo, e com medo. Ele está quase mijando. Estou sentindo. Estou vendo seu caminhar torto e escutando sua fala incerta. Tu não podes barganhar com alguém que conheces tão bem.

Meu Chevet ’77 solitário na Sunrise St.

– Ainda o mesmo carro. Ele agüenta?

– Não mude de assunto.

–Ainda não começamos a conversar.

– Então comecemos. Por que a pressa?

– Como assim?

– Onde você esteve? Sabe onde está ela?

– Não.

– Estão atrás de você também? Por que está tremendo?

– Eles tentaram. Não não é verdade o que disseram. É que ela se suicidou. Forçaram-na. Eu... eu... – A voz de paspalho soa quase incompreensível. O conteúdo de suas frases são desconexas.

– Ela está morta?

– Sim. Não houve nada que eu pude fazer.

Ele olha para cima. Eu sei que mente. Ele sabe que eu sei. Não sei a respeito do quê ele mente. Mas não é nada que não se possa descobrir.

– Porque você está com medo de mim? Porque você está vivo? Onde esteve este tempo todo? – digo isto puxando a arma e enfiando-a na cavidade inferior da cabeça, entre os ossos do seu maxilar.

Chove forte.

Finalmente, ele explica, chorando.

“Eu conheci Eva antes de você. Pesquisei a respeito dos Conccavo, descobri a filha de Louis e o lugar onde estudava. Pesquisei sua rotina. Um trabalho relativamente fácil. Eu me fiz conhecido dela. Eu joguei-a contra o próprio pai. A idéia era genial. Mas até certo ponto, sempre achei que algum obstáculo real iria me impedir de concretizá-la. Não aconteceu, e deu mais certo do que eu imaginava. Convenci-a a fazer-se de coitadinha em seu escritório, e contratar-te. Minha intenção era até boa. Só não previ a traição de Eva.

Não, ela não te traiu, meu caro. Ela me traiu. Eu queria participar como coadjuvante do caso, para usar-te como proteção se tudo desse errado. Pretendi que os encantos de Eva fossem um pretexto para que você trabalhasse neste golpe de loucos. Mas não consegui acreditar que tu a tinhas levado para casa, e de sua casa ela não saiu nem um único dia.

Meu caro, se acha que o que fiz é mau, imagina o que devo ter eu sentido, ao imaginar-te com esta mulher. Eu juro que não previ cair de amores por ela. Nunca, nunca imaginaria. Até mesmo agora é estranho pensar uma coisa destas. Eu, apaixonado. Ela...

Eu matei-a... por vingança.”

Chorando. Chove. Eu não choro. Chove.

– Você vai me matar?

– Eu tenho um presente de natal para você. É uma bala marcada. Ela estava marcada para mim, mas acho que mudei de idéia. Logo vai parar de chover para mim, mas a tempestade continuará para você.

– O que?

Um tiro para o ar. Feliz natal, bundão.
Grandes merdas. Natal.