Por que não?

Parabéns àqueles que se dão ao trabalho de abaixar para ver o que está escrito num papel do chão. Parabéns àqueles que encontram mensagens em garrafas. Parabens àqueles que escutam palavras jogadas ao vento. Esta é a minha homenagem.

Thursday, May 13, 2010

Carta a M. Lannes

Resposta a http://ponteiroapontado.blogspot.com/2010/03/carta-f-negreiros.html




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Bravíssimo,

Ando a procura de uma apóstrofe razoável para ti meu amigo, há muito, e me regozijo de ver que meu sistema ortográfico automático não o reconhece a palavra encontrada. Tenho certeza de que ela existe, mas o sistema não reconhece. Não é uma metáfora linda? Infelizmente, a apresentação formal desta carta será descaracterizada desta minúcia contextual em que tal apóstrofe foi gerada. Isso, contudo, não interfere em nada no conteúdo original da carta que, originalmente, tinha a intenção de escrever. Segue a partir de agora sem mais interrupções (embora eu me pergunte se uma interrupção entre a apóstrofe e o conteúdo do que se queria dizer ao apostrofado seja mesmo uma interrupção) a carta que originalmente queria escrever-lhe.

Seja. Minha vida, agora, como já disse anteriormente, anda calma. Tenho tido muito tempo para pensar, mas penso que ainda estão por chegar os frutos desse esforço. Já vejo folhas resplandecentes esticarem-se para o sol de uma calma e liberdade ampliadas, e uma direção já se me mostra mais ou menos nítida a respeito do que buscar. A sua narrativa autobiográfica será um tesouro que guardarei na parte mais segura da minha memória, senão o seu conteúdo textual, pelo menos a sensação indescritível que me deixou. Sensação de grande importância para a minha própria reflexão. É algo como um refinamento dos conselhos morais que recebemos das pessoas com mais experiência. Falo em 'conselhos morais' por haver em sua história um conselho, mas gostaria exatamente de precisar esta diferença entre um conselho de experiência, e este que deixa apenas a sensação vaga, mas intensa, de seu ensinamento. Mas antes, para que não me chamem de prepotente juvenil, convém explicar o que entendo por 'conselhos morais' ou 'conselhos de experiência'.

Suponho que todas as épocas tiveram seus tiranos, seus rebeldes, seus miseráveis e, até mesmo no auge da civilização (e talvez principalmente aí) escravos. O que se conclui disso é que tiranos, rebeldes, miseráveis e escravos, além de outros adjetivos que poderiam preencher mil páginas, são condições de existência da própria humanidade, ou, para não falar em termos tão gerais, da sociedade. Esta suposição, que derruba qualquer hipótese utópica, não pode ser mais verdadeira, entretanto, nas condições de jovens e velhos. Isto pelo simples fato de esta condição ser, bem mais nitidamente do que a de tirano ou miserável, imposta pela natureza. Além disso, e ao contrário de todas as outras, passa-se obrigatoriamente de uma condição para outra ao longo da vida (a não ser em caso de morte prematura, em que a palavra utilizada para designá-la já implica que morreu antes de maturar). A suposição - segundo a qual assim como a juventude e a velhice são impostas pela natureza ao indivíduo, o tirano e o mendigo são impostos pela natureza à sociedade - torna-se reveladora quando notamos a tendência tirânica dos adultos, a rebeldia dos jovens e a miséria dos velhos, todos tendo, inclusive, se motivando reciprocamente. Veja: um jovem rebela-se por achar-se submisso ao adulto que permite a miséria no mundo (leiam-se as revoltas estudantis do tempo de ditadura, ou a revolução burguesa do século XVIII, ou os golpes de estado em geral, da época das grandes dinastias...); Um senhor de respeito exige ser tratado da forma que lhe é devida pelos jovens mais inexperientes, uma vez que só ele - e tem a convicção disso - pode acabar com a miséria do mundo. O velho miserável, a não ser quando tem a chance de viver em espírito - um dom concedido àqueles que, de uma forma ou de outra, transcendem - em qualquer outra situação simplesmente padece impotente.

Claro que toda generalização contem falhas, mas a vista dessa perspectiva mais abrangente, que elimina as situações excepcionais, cria a ilusão de que a natureza controla todas as nossas decisões sociais através da sucessão de poder dos nossos discursos. Funcionaria como uma rotatividade do poder, que desta perspectiva, é tão hereditária quanto a mais severa dinastia. Ele se renova ao ser derrubado, mas à medida que envelhece, corrompe-se, deteriora-se, enquanto a juventude, que vigora, chega para suplantá-lo. Eu me reconheço como um jovem, e é por isso que estou falando disto tudo, para voltar ao assunto dos 'conselhos morais' ou 'conselhos de experiência'. Eu queria dizer que os conselhos morais são dados por pessoas cujo conhecimento se baseia num passado repetido e, em algumas hipóteses, em um passado construído por eles mesmos. Esses conselhos são dados tendo em vista um futuro previsível (embora a minha suposição generalista indique necessariamente os dois únicos futuros derradeiros: a vida espiritual ou a miséria e o esquecimento) e valem dentro deste mundo pré-conhecido ou mesmo pré-concebido - não pela natureza, como se poderia pensar, mas pelos adultos. Valem dentro deste mundo, aliás, que provavelmente foi concebido durante a própria juventude desses mesmos adultos tirânicos. A natureza só cria a dinâmica intrínseca da humanidade, assim como criou a de todos os outros seres vivos. Mas esta visão interna que nós temos, e esse dom maravilhoso que é a capacidade de se olhar para dentro e pensar, torna possível a vida espiritual, e a consciência desta vida espiritual torna obrigatória a sua busca, caso contrário não se tomou consciência dela.

Falando de uma vida espiritual, é muito fácil confundir-me com um pregador religioso, mas tu bem sabes qual é a minha opinião a respeito de um Deus personificado. Bergson utilizou a palavra 'Deus' apenas uma vez em seu livro, pelo menos até o ponto em que cheguei. Eu me lembro perfeitamente da frase, embora seja difícil explicar o contexto inteiro, mas o que ele diz é que "... Deus imaginado desta forma não tem nada de pronto. É indeterminação pura. (...)". Eu sei que, para ti, não preciso explicitar essas coisas, por isso basta-me deixar aqui esta citação e, caso o termo 'vida espiritual' possa suscitar idéias errôneas, Bergson poderá resolvê-las.

A busca desta vida espiritual representa, portanto, o grande objetivo da vida de um homem que se liberta das amarras da maior tirania que existe, a da própria natureza, evitando, inclusive, tornar-se um adulto tirânico e um velho miserável. É por isso que seu conselho, a que vou fazer menção textual para que não haja dúvidas, tem mais o caráter de um conselho de espírito do que qualquer outro. É o conselho que revela uma descoberta pessoal, uma novidade universal, por assim dizer. É algo de que qualquer pessoa com aptidão para tal poderia usufruir. Não é como os valores naturalmente estipulados e infinitamente recortados pelas morais sociais, os conselhos morais, indicações de um padrão comportamental ou algo destinado a me dar vantagens neste mundo absurdo da civilização contemporânea, mas sim uma pequena luz através de uma pequena porta, que leva a um belo jardim desconhecido!

"Sempre que tiver entediado, ou triste, ou qualquer coisa parecida, vá pra rua sozinho, sente em um lugar movimentado, onde outras pessoas irão conversar e fique apenas escutando e criando a história da vida delas. Isso é fantástico, isso ameniza qualquer tristeza."

Simplesmente isso é que é o seu conselho. Imaginei que não te lembrasses bem dele, pois não passa, no fundo, de uma forma de falar, um recurso literário para abordar de um outro ângulo o assunto em questão, que é a cenarização. Afinal de contas, quem faz um conselho abstêm-se completamente da responsabilidade de tê-lo feito. Um conselho é só um conselho e ninguém é obrigado a segui-lo, certo? Duvido muito, como você faz menção em seguida ao conselho, que um jovem qualquer seria capaz de ultrapassar sequer a barreira lingüística de modo a entender o que significa a totalidade da nossa correspondência. Mesmo assim, por muitos que sejam os obstáculos para a compreensão dessas idéias, quero crer que, por um magnetismo espiritual, vamos um dia encontrar, espalhados pelo mundo ou dormindo em uma casa vizinha - que seja - indivíduos que perceberam a beleza do mundo natural e a natureza particular do homem, e nela, a sua própria beleza. E juntos poderemos descobrir coisas novas até um dia transcendermos ao ponto de tocar mesmo a massa adormecida das pessoas com a nossa Arte. Enquanto não encontramos nossos irmãos de espírito, teremos sempre a nós mesmos, e consciência disso, para nos divertir e brincar com o resto do mundo, como se fosse o nosso jardim secreto.

Quanto à biblioteca de babel, não consigo mais avançar no projeto sem a ajuda de um bom programador.

Minha mão já pesa sobre o teclado e, na certeza de escrever em breve, limito minha remessa a este ponto. Desejo as mais belas felicidades a senhora Lannes, e a ti.

Do sempre e muito seu,
F. Negreiros

1 Comments:

Anonymous Mário Negreiros said...

Se o jovem se rebela contra o adulto que permite a miséria no mundo o jovem há de acreditar que, ele sim, será capaz de acabar com a miséria no mundo, se não, não faz sentido.
Enganas-te: o adulto está longe de ter a convicção de que será capaz de acabar com a miséria no mundo. Só os velhos sabem melhor que ele que ninguém acabará com a miséria no mundo. Os jovens, sim, ainda acreditam nisso e, por isso, rebelam-se contra os adultos - frequentemente com laivos de tirania.

12:53 AM  

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