Por que não?

Parabéns àqueles que se dão ao trabalho de abaixar para ver o que está escrito num papel do chão. Parabéns àqueles que encontram mensagens em garrafas. Parabens àqueles que escutam palavras jogadas ao vento. Esta é a minha homenagem.

Sunday, January 03, 2010

Natal. Grandes merdas. Nem sequer os puteiros estão funcionando. Quando imagino o que estarão fazendo as putas, sinto algo parecido com vontade de rir. Não importa se estão com um cliente ou com uma família, são todos loucos, clientes natalinos ou famílias de putas. O mercado do sexo não pára nunca e eu sei que algo deve estar aberto. Já fui à Downey Road, onde costumam haver algumas vagabundas dando nas calçadas, mas com este frio, claro que só encontrei uns mendigos congelados. Depois desci para as docas, mas com as discotecas fechadas, também fecharam os motéis. Fui subindo de nível. Quanto mais próximo da Sunrise Av., mais caras as putas. Mas hey!, é natal! Época de nos darmos presentes, e eu sou minha própria família. Tenho direito ao melhor presente, já que sou filho único! Market Street, President Gump street, Westside Hills, tudo vazio. Se continuar assim vou acabar falido! Será que tinha como ficar pior? A tempestade de neve molhada mão perdoa a cidade, caindo em gotas que são verdadeiras bolas de gelo, granadas explodindo ao atingir o capô do meu Chevet ’77.

Talvez não tenha sido uma boa idéia vir procurar prostitutas numa data tão especial. Especial não pelo significado, claro. Estou-me nas tintas para Baby Jesus. Mas ao passar pelas ruas chiques do Uptown, e ver as luzes nas janelas festivamente decoradas dos lofts milionários que margeiam a estrada, um enjôo mais revoltoso que o normal toma conta das minhas tripas. Não que eu realmente me importe com as condições de vida das pessoas em geral, mas não consigo deixar de pensar no sangue frio com que esses figurões fazem circular o dinheiro entre si, dando jóias para as virgens e carros para os moleques, perfumes e esculturas, aquelas peças de design decorativas sem nenhuma utilidade, mais caras que o meu cu, trocando tudo entre si, à custa da miséria que reina fora de suas fortalezas de crédito. E ainda são capazes de sustentar veementemente a beleza do espírito natalino. Dar e receber. Grandes Merdas. Quero ver o que eles dariam em troca da chance de continuar vivendo. Sério mesmo. Queria pegar um cara desses e apontar-lhe uma arma na cara, dizer ‘feliz natal’ e mandá-lo fechar os olhos antes de atirar para cima. Poderia fazer isso mil vezes e a minha diversão seria apostar quais deles se cagariam, quais mijariam, e quais morreriam ali mesmo, de susto! Esse é o meu presente de natal para esses bundões: não mata-los. Haha... “feliz natal, você está vivo bundão”. Ano que vem vou colocar isso escrito no pára-choques.

Finalmente, alguma esperança. Sunrise St. nunca dorme. Os dois seguranças da casa também não. Estaciono. Caminho lentamente sem me importar com a chuva que pesa sobre meus ombros. Uma pessoa familiar entra no motel. Uma pessoa familiar? Mas meus familiares estão mortos. Amigos, se é que os tive, estão agora comendo grama pela raiz.

Essa chuva me faz lembrar. É como se tivesse bêbado. Mais do que já estou.

(Que merda, preciso dar um gole antes que as lágrimas venham-me aos olhos por outro motivo que não seja a ardência da vodka vagabunda na garganta.)

Estava chovendo assim naquele dia.

Chuck, Dave, e Joe-Joe Rebatedor eram pessoas boas. Eram perfeitamente coerentes. Amigos, até certo ponto. Acho que se não tenho amigos agora, não os tinha antes. Não foi a morte dos três rapazes que me fez como sou. Muito pelo contrário. Eles eram as únicas pessoas em quem eu confiava, por serem, dentro de sua coerência, a justificativa perfeita para os meus próprios vícios. Pelo menos eram pessoas que eu conhecia o suficiente para poder reconhecer os padrões morais. Ninguém é bom, nem mau. Apenas tem vícios mais, ou menos doentios. Mesmo em uma época como a nossa, acredito que ninguém faz algo que saiba ser malévolo, sem terminar por encontrar em si mesmo o juiz e o carrasco. O que mais me irrita numa pessoa, é falta de coerência. Normalmente, não demoro muito para perceber o modo como alguém age. Posso imaginar perfeitamente o fariam se achassem uma carteira cheia de dinheiro na rua, ou se vissem uma velhinha sendo assaltada. Ou em situações mais delicadas como criar um filho ou dar o cu. Isso também. Identifico um homem que gosta de dar a bunda no momento em que ele começa a falar. Mas é um tino meu que não vem ao caso. O que eu ia dizendo: não há coisa que me desestabilize mais do que uma pessoa incoerente. Pessoas como Eva.

Eva, com sua castidade provocante e malícia tão bem disfarçada de ingenuidade, desde quando chegou ao meu pequeno escritório de advocacia em New Gate, até hoje, é um mistério para mim. Precisava dos meus serviços sujos. “As pessoas precisam de advogados não para lhes dizer o que podem e o que não podem fazer, mas sim para lhes dizer como fazer o que querem fazer”. Pelo menos este é o perfil dos meus clientes. Eva não se encaixava neste perfil. Ela parecia desconfortável com a idéia de estar fazendo uma coisa tão suja. Talvez se não tivesse chorado eu fosse capaz de perceber que havia alguma coisa de errado com o fato de alguém que aparentava uma pureza espiritual tão grande, estar me contratando para o caso mais sujo em que já trabalhei. Eu sou muito bom para perceber intenções obscuras, mas Eva era pior do que ininteligível. Era enganadora. Via uma garotinha indefesa em um corpo de manequim. Vi apenas a perfeição de suas formas sem me tocar do óbvio pecado que o rondava. Enfim, apesar do meu olfato apurado, senti apenas o perfume Dolce & Gabana e não o cheiro de morte que emanava da mulher fatal.

Chuck, Dave e Joe Joe Rebatedor. Meus amigos, ou companheiros, ou parceiros. Não sei e já não importa, por que já não são nada. Estão tão mortos quanto eu, com a exceção de que eu ainda posso andar e sofrer. O primeiro me ajudava com as causas e com as drogas. Era incrivelmente inteligente, apesar da cara de paspalho. Tinha contatos em toda a cidade e podia conseguir o que precisássemos em qualquer época do ano. Falava muito bem. Dizia que queria ser escritor, mas onde seu dom realmente se manifestava era no tribunal. Vi um professor que abusava das alunas ser absolvido em júri popular graças à sua lábia.

Dave e Joe-Joe Rebatedor faziam free lance para nós quando precisávamos. O primeiro era um nerdzinho que deu errado, perito em conseguir evidências que só poderiam ser conseguidas de forma imoral, isto é, grampeando telefones de suspeitos, fotografando encontros comprometedores e filmando transações corruptas. O segundo era um ex-policial que fora expulso do quadro por matar acidentalmente um meliante. Adorava bater nas pessoas e isso vinha muito a calhar em casos em que a única solução era silenciar testemunhas.

Eu me lembro como se estivesse bêbado. Mais do que já estou. Eva chorando no escritório vazio. A chuva torrencial. Nada mais natural do que oferecer um cigarro, um gole de vodka, um braço amigo e tudo o que disto naturalmente se desenrola. Ela não tinha sequer terminado de explicar o caso, ou talvez não tivesse sequer começado a explicar, quando já estava nua no sofá, contorcendo-se com os espasmos de prazer. Até hoje eu não sei quem fodeu quem aquela noite. Mas na hora, eu não pensava em nada. Nada mesmo. A puta conseguiu esvaziar-me de espírito completamente. Passei o resto de noite fumando um cigarro e olhando para a chuva, exatamente como estou fazendo agora, enquanto ela dormia. Linda.

Eva era filha de Louis Conccavo. Dentre os muitos negócios geridos pela sua família, estava o contrabando de drogas. Eva precisava de mim para processá-lo de alguma forma. Era fácil demais. O homem estava afundado em merda. Tinha muito dinheiro e isso o mantinha longe dos tribunais. Eva queria que eu encontrasse uma brecha que nem mesmo o dinheiro seria capaz de cobrir. Eu fiquei muito orgulhoso com a solução que encontrei. O único crime que o estado não perdoa: sonegação do imposto de renda.

Pensando melhor, acho que houve momentos em que a chuva deve ter parado. Não é possível uma chuva torrencial, com bolas de neve e gelo gigantes, durar mais do que três dias. Mas isso é apenas uma conclusão racional e quase especulativa a respeito do passado. Baseado na minha memória, sem me deixar levar por devaneios lógicos, afirmo com toda a certeza: estava chovendo o tempo todo. Tenho certeza disto, por que era mais ou menos a desculpa utilizada por Eva para não sair nunca de minha casa. Durante os interrogatórios, nos quais Joe Joe Rebatedor cumpria uma função crucial; durante as longas horas de tediosa atenção à escuta instalada por Dave; durante os colóquios com Chuck, em que discutíamos a abordagem ao caso; enfim, durante toda a semana que durou a investigação, não parou de chover, e Eva não saiu de minha casa.

Tenho que admitir: cada noite que passamos juntos valeu por toda a minha vida. Essa puta. Eu ainda a amo, e a perdoaria, se fosse possível.

Chuck tinha a solução para tudo. Guiou o processo todo. Por que será que ele se entregou com tanta vontade a este caso, eu não entendo. Redigiu o texto de acusação, em que demonstrava o dolo na omissão de pagamento dos impostos. Conseguiu fazer parecer com que fosse o pior dos crimes cometidos por Conccavo. Mas fui eu que assinei. Como fui burro. Como fui cego!

O que tinha em mente, é que caso o Louis fosse preso, Eva Conccavo iria ficar livre, e não seria difícil, por meios legais, tomar posse do império de seu pai. Ele apodreceria na prisão à medida que fossemos, gradativamente, incluindo em sua ficha penal, as acusações de extorsão, chantagem, assassinato e tortura, que já pendiam sobre seu pescoço, e apenas não caíam por causa do império financeiro sobre o qual estava deitado no momento. Bastava que fosse preso, e todos os benefícios de suas empresas de lavagem de dinheiro, por onde circulavam milhões de dólares imundos, passariam para as mãos de Eva. E eu pensava tê-la em minhas mãos.

Agora a história se torna inacreditável, mas é assim que se configuram todas as cenas na minha cabeça: O tribunal, a chuva, as trinta e sete horas de deliberação, a chuva, a ausência repentina de Chuck, a chuva. A chuva não parou um segundo. Lembro-me como se estivesse bêbado, de andar pelos corredores do tribunal, sem entender o que estava acontecendo. Muitos filhos das putas estavam presentes. Parecia que um peido fora do lugar poderia desencadear um tiroteio. Antigos clientes meus, que me deviam a sua liberdade, estavam acompanhando o acontecimento. Não por lealdade, nunca, mas sim pelo fato de serem associados de Conccavo. O Réu não perdia a pose. Usava um bigode farto, grisalho, cabelos ainda volumosos, apesar da idade, e as rugas eram imponentes, marcadas na testa de tal forma que esta parecia estar sempre contraída, em intensa atividade cerebral. Jurava com a mão na bíblia e mentia descaradamente, às vezes despropositadamente. Se fosse júri popular, ele estaria solto, graças à capacidade argumentativa da ameaça às famílias e amigos. Essa era a grande vantagem de incriminá-lo por sonegação de impostos: um juiz soberano e implacável, mais sedento por vê-lo atrás das grades do que qualquer um no local.

Foi nos últimos momentos do julgamento que Chuck desapareceu. Procurei em vão por todo o fórum. A sentença, seis anos de prisão, não me alegrou. O desaparecimento de meu parceiro era muito preocupante. Foi só então que comecei a pensar nas conseqüências de meus atos. Iríamos ser perseguidos para o resto das nossas vidas até que Louis Conccavo tivesse sua vingança. Eva, com malícia, com carícias, me cegara para o fato óbvio: movimentar um processo contra seu pai era suicídio. Mas ainda não tinha tudo claro na minha cabeça. Meu primeiro instinto ao me dar conta de que Chuck sumira, foi ligar para o escritório. Dave atendeu. Estava de prontidão, para o caso de precisarmos de algum tipo de ajudar fora do Fórum, durante todo o processo. Antes de dar as boas noticias (a sentença, que no fundo era a causa das más notícias), dei as más: Chuck não estava em lugar algum; ia ser difícil sair vivo do tribunal; estávamos todos na mira dos Conccavos; e o mais importante, Eva estava em perigo. Na minha cabeça, ainda não estava claro quem ela era. A mulher que me matou, matou Chuck, matou Dave, e matou Joe Joe Rebatedor. Naquele momento, ainda me preocupava com ela. O amor é burro e eu amava. Ainda amo, mas agora sei que ela não está em perigo, nem nunca esteve.

Ia pedir a Dave que chamasse Joe Joe Rebatedor, e que fosse com ele à minha casa, protegê-la. A chuva caía forte e barulhenta. Havia ruído na ligação. Eu estava confuso e a conversa com Dave durou uma eternidade e terminou antes de terminar: o inconfundível barulho de uma porta sendo arrombada com um chute, tiros, gritos. Depois passos e a mudez mortal do telefone desligado. Com certeza Dave estava no pior lugar para se estar no momento do decreto de prisão de Louis Conccavo: no meu escritório. Era só questão de tempo até que chegassem a meu apartamento, ou talvez o mesmo estivesse a acontecer simultaneamente nos dois lugares. Eva estava em perigo.

Lembro de dar um grande trago de vodka, a última vodka de boa qualidade que tomei desde então, e também a mais amarga. Eva estava em perigo, Chuck deveria estar em sérias dificuldades, Dave – Morto! Mais um gole. A garrafa está quase no fim. A chuva está mais forte do que nunca. O próximo a morrer é Joe Joe Rebatedor. Tentei ligar para ele, mas acabaram as minhas moedas. Tinha um rolo de notas de cem enfiadas dentro da cueca, como sempre, mas não tinha onde trocá-las. Destravei a minha pistola. Sabia o que vinha pela frente.

Felizmente, todo bom advogado conhece as saídas discretas dos Tribunais. Havia um beco que dava acesso à rua de trás. Lá havia também a porta dos fundos de um restaurante, onde era freqüente estar algum garçom ou cozinheiro fumando um cigarro. Dentro do tribunal eu estava seguro, mas se fosse visto a sair, seguramente teria meus passos contados, até que uma bala viesse dar bem na minha cabeça. Tranquei-me no banheiro e esperei, observando pelos tijolos vazados que ficavam à altura dos olhos de quem estivesse de pé na privada, até o momento em que vieram dois dos homens do restaurante. Era minha deixa.

Atravessei a multidão na nave central do Fórum, cobrindo a face com o chapéu. Se alguém me perguntar por que os advogados se vestem todos da mesma forma, a resposta será: “para situações como esta”. Se alguém me viu, não me reconheceu. Consegui escapulir para a sala de manutenção, onde os cabos dos elevadores subiam e desciam, e de onde se podia chegar às escadas de incêndio, que levavam ao beco, onde ainda estavam fumando os garçons. Tirei uma nota de Cem da cueca. Ao passar pelos dois, deixei-a cair bem visivelmente em frente a eles. Espero que não se tenham matado entre si. Cinqüenta reais para cada um estavam de bom tamanho para que me deixassem passar. Antes que a porta se fechasse atrás de mim, recomendei que fossem irmãos na divisão, e que não gastassem tudo em doces. É incrível como consegui ser sarcástico na situação em que me encontrava, mas é mais forte do que eu. Ao mesmo tempo em que sofria pela possibilidade de chegar a casa e encontrar a mulher morta, estava contente com a minha própria astúcia. Passei pela cozinha, depois pela grande despensa com os vinhos e as carnes temperadas, quase cedi à tentação de levar uma garrafa comigo, dentro da gabardine, mas não tive tanta presença de espírito. Adentrei em passos rápidos o grande salão de jantar, onde um pianista levava um standard de jazz qualquer, e alguns casais dançavam.

Foi também a última vez que estive em um lugar como esse. Antigamente, costumávamos ir os quatro, eu, Chuck, Dave, e Joe Joe Rebatedor, para o after hour neste mesmo lugar. Bebíamos como loucos e sempre quebrávamos mais taças do que o total utilizado. Algumas das putas eu conhecia. Mas desta vez era diferente, e eu não podia flertar. Algumas eram da rede de Conccavo!

Tudo saiu como esperado. No restaurante não me incomodaram, mesmo que tenham reconhecido. Do lado de fora, pude ver com facilidade, os vários capangas esperando, em motos, alguns dentro de carros, até um furgão parecia estrategicamente localizado. Reconheci também um policial corrupto que conseguiu manter o nome limpo graças ao meu trabalho e ao dinheiro de Conccavo. Naturalmente, o sentimento de retribuição não tinha voz perante o poder sedutor do dinheiro, ou antes, o instinto de auto preservação. Eu era um merda, Conccavo era simplesmente o motor que fazia girar as rodas da cidade.

Mas, como uma sombra, me esgueirei do restaurante até o Chevet ’77, passando mesmo a alguns metros de um dos capangas que se protegia da chuva do lado oposto ao Tribunal, sem tirar os olhos dos degraus de mármore da imponente construção. Ninguém me viu.

Arranquei, para a surpresa dos meus perseguidores. Acelerei o mais rápido possível, fazendo queimar o pneu, e lançando uma nuvem de vapor ao redor das rodas. Virei à esquerda, para onde sabia haver uma encruzilhada. Quebrei rapidamente no sentido da Avenida Marginal, onde meu motor poderia fazer comer poeira qualquer um que tentasse me seguir. Se eu fosse pego, nunca teria a chance de salvar Eva das garras furiosas da sua própria família.

Ia a cento e cinqüenta quilômetros por hora, pensando nisto, refletindo sobre as sete noites em que possuí seu corpo, e antevendo a solidão que me esperava. Neste momento senti que perderia tudo se não voltasse a vê-la. Nunca imaginei, porém, que estivesse sendo traído. Será que foi por isso que me apaixonei por Eva? Por sua capacidade de trair sem que eu perceba? De esquivar-se da minha previsão e surpreender-me? Claro que não pensava nisto enquanto varava na tempestade na Avenida Marginal, tendo a praia e as ondas a estourar contra as rochas como paisagem. Naquele momento, eu amava verdadeiramente. Não sabia conscientemente, mas mesmo que escondesse de mim este sentimento inconsciente, sabia que era o mistério, presente desde o primeiro momento, que me atraía em Eva, e, portanto, a incerteza constante de ter meu amor correspondido.

Ao completar dez minutos de solidão na estrada – nem carros a seguir-me, nem carros a embarreirar a estrada – dei meia volta e segui o caminho até minha casa, que ficava muito perto do escritório, ambos perigosamente próximos do Fórum. Deveria haver uma tropa de choque a minha procura nas redondezas. Resolvi estacionar o Chevet ’77, que já estava visado, e me aproximar de casa pelo metrô. Estratégia de guerra: tenha sempre uma passagem subterrânea próxima da base, para o caso de ser necessária uma retirada de emergência. Misturado na multidão, camuflado pelos casacos, chapéus e guarda-chuvas, cheguei vivo. Resta saber se cheguei a tempo.

Entrada pelos fundos, escada de incêndio, o corredor escuro está iluminado pela luz de uma fresta. A porta está aberta. A porta da minha casa! O cheiro de morte. Dolcce & Gabana. “Ela está morta”, pensei e dei um gole de vodka com a mão esquerda, enquanto com a direita empunhava a Colt.

A porta range, a chuva cai, o silêncio barulhento do abandono, um mundo que cai. Não é Eva que está morta, mas Joe Joe Rebatedor, com um tiro certeiro na cabeça. Não havia sinais de luta. A porta não tinha sido arrombada. O perfume me torturava como uma risada macabra, os sete dias de paraíso transformados em sonho, e o sonho transformado em pesadelo, e a chuva, sempre a chuva. Desde então nunca parou de chover. Eva me traiu. Matou meus amigos, me deixou para pagar pelos meus pecados, nas mãos de todos os canalhas que libertei. Eu não era nada, uma peça em seu jogo. Uma mulher capaz de planejar um golpe destes contra o próprio pai certamente era capaz de tudo, e foi. Sua voz soava no perfume, seu cheiro dizia “todos os homens que cruzarem meu caminho sofrerão” e eu sofria mais, por não ser o único. Na verdade, eu ainda a amo.

Um gole de vodka, o último da vodka boa. A partir de então, minha vida virou uma fuga constante. Racionamento, redução das necessidades. Eu que antes tinha mais dinheiro do que podia gastar, agora já estava gasto, por mais dinheiro que tivesse. Tinha que estar sempre em movimento. Ainda dei alguns passos perdido pelos cômodos da minha antiga casa. Atordoado e perdido, perdido de tudo e de todos, não tinha mais destino. Os caçadores de recompensa, os cães da família, todos os mafiosos que deviam favores ao pai de minha amada, agora me procuravam e seria uma questão de tempo até que viessem à minha casa. Tive mais sorte do que Joe Joe Rebatedor, o pobre gorila com certeza tinha algum cérebro, e pela primeira vez na vida deve ter tomado uma boa atitude, ao vir voluntariamente em socorro da nossa traidora. Mas isso não era difícil de prever, ainda mais para mim, ainda mais para Joe Joe Rebatedor. Quem diria que sua recompensa seria uma bala na testa, vinda da própria mão que pretendia salvar.

Não me prolonguei muito com esses pensamentos. Depois de passar por cada quarto, de esvaziar a despensa em um saco (suprimentos), lembrar de pegar meu caderno de anotações, mas desistir da idéia (pra quê um morto precisa de um caderno de anotações?) e voltar finalmente à sala, onde jazia, com o taco ao lado, o cadáver corpulento de Joe Joe Rebatedor, me dei conta de que precisava me apressar. Quando alguém se dá conta de que deve se apressar, imediatamente o corpo se altera. Toda uma química secreta de glândulas e hormônios entra em atividade. Seu sangue se torna mais espesso, seus reflexos mais rápidos, seu sono mais leve. Desde que me dei conta, em minha casa, de que tenho de me apressar, nunca mais voltei ao estado normal. Isso é que é estar sempre em fuga.

A pressa justificou-se imediatamente. Passos na escada e o rangido característico do elevador (sabia, pelo hábito, que o elevador demoraria ainda 4 segundos para chegar ao meu andar) denunciaram a chegada de meus perseguidores. Seriam homens de Eva ou de Louis? Não importa. Podia ser até mesmo a polícia. Eu estava fodido à grande.

Rápido, a sacada! Dei um salto preciso e meus pés fixaram-se na sobra exterior da grade metálica. Para um advogado, eu sempre fui relativamente ágil. Fui para o apartamento vizinho, arrombei sem cerimônia a porta da varanda, e com alguma cerimônia corri pela sala. Desta vez, tive mais presença de espírito e passei na cozinha. Um Hermitage de La Chapelle veio muito bem a calhar. Disse que nunca mais bebi uma vodka boa, mas esta garrafa de vinho ainda me proporcionou grandes momentos na estrada.

Desci pelo elevador, como se fosse um morador comum. Em momentos como este, minha sensibilidade com as reações humanas, da qual já falei, se torna muito apurada. Podia imaginar precisamente os homens de Louis e os de Eva, mais a polícia, que alguma hora ia dar com o rastro de corpos deixado pela mulher veneno, se encontrando, nos lugares óbvios onde eu estaria sendo procurado, mas no prédio vizinho não me achariam. Meio eufórico, meio delirante, considerei até mesmo a hipótese de esperar para ver isso, o encontro entre esses bandidos. Os mal entendidos, os conflitos, as ameaças, as chantagens. Eu tinha sido a fagulha desta porra toda. Era um milagre não ter tido os mesmos destinos de Chuck, Dave e Joe Joe Rebatedor. Por isso mesmo, a euforia, e a sensação de confiança. Sentia-me protegido por uma força misteriosa, capaz de mover montanhas, mas não se chamava fé. Chamava-se ódio.

Mas não esperei. Não sei por quê. Não teria nada a perder, de qualquer forma. Desde que perdi Eva, não tenho nada a perder.

Lembro-me de caminhar até o metrô, que já estava menos movimentado. De voltar para a praia, onde tinha estacionado o carro. De fumar uns quantos cigarros.

Das ondas quebrando furiosas.

Da tempestade que até agora perdura.

Lembro-me de tudo...

(Que merda, preciso dar um gole antes que as lágrimas venham-me aos olhos por outro motivo que não seja a ardência da vodka vagabunda na garganta.)

Uma cara familiar. Está negociando alguma coisa com a cafetina.

Faz uma semana que voltei para esta cidade, depois de um ano sozinho, mergulhado na circulação sanguínea das urbes – as estradas. Minhas últimas economias serão suficientes para uma foda de qualidade, mas não sei como vou sobreviver ao Reveillon. Ainda tenho uma bala no tambor, que dei de presente para mim mesmo, no primeiro natal depois da morte dos meus camaradas. Joe-Joe Rebatedor, Dave e Chuck, que se não estiver morto, tem de estar muito mal das pernas, assim como eu. Talvez esteja na hora de usar meu auto-presente. Mas antes, às putas, pois o paspalho que pechinchava uma foda já conseguiu o desconto que queria. Quem será esta cara familiar que conseguiu algo que eu nunca imaginei possível?

– Henry?

Quem pode ser este estranho que me chama pelo nome?

– Chuck?

Vivo, mas fodido. Afinal, estava em um puteiro, no natal.

De repente, descubro que desaprendi a estar feliz, ou mesmo contente. O reencontro com o camarada, que eu pensava morto, não faz com que meu rosto se altere em nada. Nos olhamos por um tempo. Há apenas o barulho da chuva, o olhar desconfiado da cafetina, e o cheiro forte de perfume vagabundo do puteiro. Eu falo:

– Vamos conversar lá fora.

– Não. Tenho um desconto para aproveitar.

Chuck, apesar de extremamente convincente, é previsível. Gosta de dar o cu, mas não está pensando nisso neste momento. Está pensando em escapulir pela entrada de serviço. Eu farejo medo.

– Vamos conversar lá fora. – Insisto.

Desvia os olhos para a cafetina. Eu olho também. Ela parece prestes a tomar uma medida. Uma briga no natal é algo deveras desagradável, até mesmo no submundo.

– Não queremos causar nenhuma confusão. – Eu digo antes que Chuck possa tentar argumentar o que quer que seja. Prefiro não ter que usar a Colt, mas se ele se recusar a vir comigo, acho que vou enlouquecer. Mas meus músculos da cara não se contraem.

–Está certo. Vamos conversar lá fora.

Meu dedo pára de acariciar o cabo da pistola. Tiro a mão do bolso e pouso-a o mais amigavelmente que consigo, sobre a nuca de meu grande amigo, vivo afinal de contas. Vivo, e com medo. Ele está quase mijando. Estou sentindo. Estou vendo seu caminhar torto e escutando sua fala incerta. Tu não podes barganhar com alguém que conheces tão bem.

Meu Chevet ’77 solitário na Sunrise St.

– Ainda o mesmo carro. Ele agüenta?

– Não mude de assunto.

–Ainda não começamos a conversar.

– Então comecemos. Por que a pressa?

– Como assim?

– Onde você esteve? Sabe onde está ela?

– Não.

– Estão atrás de você também? Por que está tremendo?

– Eles tentaram. Não não é verdade o que disseram. É que ela se suicidou. Forçaram-na. Eu... eu... – A voz de paspalho soa quase incompreensível. O conteúdo de suas frases são desconexas.

– Ela está morta?

– Sim. Não houve nada que eu pude fazer.

Ele olha para cima. Eu sei que mente. Ele sabe que eu sei. Não sei a respeito do quê ele mente. Mas não é nada que não se possa descobrir.

– Porque você está com medo de mim? Porque você está vivo? Onde esteve este tempo todo? – digo isto puxando a arma e enfiando-a na cavidade inferior da cabeça, entre os ossos do seu maxilar.

Chove forte.

Finalmente, ele explica, chorando.

“Eu conheci Eva antes de você. Pesquisei a respeito dos Conccavo, descobri a filha de Louis e o lugar onde estudava. Pesquisei sua rotina. Um trabalho relativamente fácil. Eu me fiz conhecido dela. Eu joguei-a contra o próprio pai. A idéia era genial. Mas até certo ponto, sempre achei que algum obstáculo real iria me impedir de concretizá-la. Não aconteceu, e deu mais certo do que eu imaginava. Convenci-a a fazer-se de coitadinha em seu escritório, e contratar-te. Minha intenção era até boa. Só não previ a traição de Eva.

Não, ela não te traiu, meu caro. Ela me traiu. Eu queria participar como coadjuvante do caso, para usar-te como proteção se tudo desse errado. Pretendi que os encantos de Eva fossem um pretexto para que você trabalhasse neste golpe de loucos. Mas não consegui acreditar que tu a tinhas levado para casa, e de sua casa ela não saiu nem um único dia.

Meu caro, se acha que o que fiz é mau, imagina o que devo ter eu sentido, ao imaginar-te com esta mulher. Eu juro que não previ cair de amores por ela. Nunca, nunca imaginaria. Até mesmo agora é estranho pensar uma coisa destas. Eu, apaixonado. Ela...

Eu matei-a... por vingança.”

Chorando. Chove. Eu não choro. Chove.

– Você vai me matar?

– Eu tenho um presente de natal para você. É uma bala marcada. Ela estava marcada para mim, mas acho que mudei de idéia. Logo vai parar de chover para mim, mas a tempestade continuará para você.

– O que?

Um tiro para o ar. Feliz natal, bundão.
Grandes merdas. Natal.

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