Por que não?

Parabéns àqueles que se dão ao trabalho de abaixar para ver o que está escrito num papel do chão. Parabéns àqueles que encontram mensagens em garrafas. Parabens àqueles que escutam palavras jogadas ao vento. Esta é a minha homenagem.

Sunday, September 20, 2009

A jornada de um ocaso

“Passageiro: Marcel Bernardes; data e hora: -- / -- / ’50 -- : -- ; preço: 710 Piastras; Partida: Santa Maria da Graça; Destino: Labrunette”

“Passageiro: Bernardo Negromonte; data e hora: -- / -- ’50 --:-- ; Preço: 710 Piastras: Partida: Santa Maria da Graça; Destino: Labrunette”

Compramos a passagem com data de embarque em aberto fazia duas semanas. Desta forma a viagem aconteceu de forma espontânea, ainda que planejadamente espontânea. No caminho para a estação da Igreja de Santa Maria da Graça cruzamo-nos com um nosso amigo, velho de guerra, que concedeu-nos sua bênção.

"E aí, tudo bem? Ih... Já sei, não precisa nem falar nada" Foi só o que ele disse e nós nos sentimos prontos, mais do que nunca, para partir.

Enquanto esperávamos na plataforma 3 da estação, encontramos uma pessoa que ganhara minha admiração por freqüentar a Boca do Inferno, um lugar bárbaro, como o nome indica, de que eu gosto muito apesar disso, ou talvez por causa disso. E poucas pessoas gostam. A maior parte rejeita a barbaridade que eu considero uma força da natureza: o que de humano se pode comparar ao vento ou às marés. E gostei dela por parecer ter esta mesma opinião. Alícia chamava-se.

Acompanhou-nos, meio que de supetão, quando o trem abriu as portas, colocou-se a questão ‘e agora?’ ao que ela ainda hesitante respondeu “Eu já vou logo avisando que não vou até a Boca do Inferno hoje”. Ela supôs que íamos para lá, mas ao contrário, estávamos viajando na direção sul, para Labrunette.

A voz metálica da informante soou incompreensível em meio ao barulho de metal se chocando, enquanto o trem já havia devorado um quinto das léguas que nos separavam do destino final. Não era uma paragem prevista, e parecia haver algum tumulto no vagão da frente. Uma mulher saiu, caminhando com auxílio de dois homens, e mesmo assim suas pernas tremiam com o pouco esforço que tinham que fazer. Estava grávida e a placenta pingava marcando o chão com um rastro. Pensei em aproveitar a paragem para comprar suprimentos, mais por Alícia, uma vez que ela não tinha se preparado para o percurso que pretendíamos fazer. Não cheguei sequer a formular este pensamento em palavras, pois imediatamente o trem voltou a andar.
Estávamos em Humanhá, o ultimo lugarejo da nossa cidade, que por sua vez chamava-se Ignópolis. Mais para frente havia um grande lago cujas margens do lado oposto não podiam ser avistadas. O relevo era acentuado na beira deste Lago e o caminho de ferro seguia serpenteante, possibilitando apenas raras vistas das águas calmas. Era de praxe fazer uma parada na Casa do Mago, o último casebre que podia se considerar ainda parte de Ignópolis, já na zona mais isolada de Humanhá, onde era raro ver caminhantes. Apenas mensageiros montados e o trem passavam daquele ponto. As únicas pessoas que se aventuravam por aqueles ermos eram alguns poucos temerários da vila que consultavam o oráculo, além do próprio mago e seu aprendiz. Estes rondavam o entrono a procura de cogumelos, ervas e criaturas das trevas para suas poções. A superstição contribuía para tornar aquele lugar deserto, mas a possibilidade de encontros com salteadores tornava o risco real. Nós não estávamos armados, apesar de ser o costume entre todos os viajantes. Eu, pelo menos, sempre fui muito mais capaz de me entrosar em territórios desconhecidos do que atirar ou empunhar um sabre. Meu companheiro usava outras formas de proteção.

A parada na Casa do Mago era de praxe, mesmo com toda a superstição e risco de assaltos. De certa forma, o mistério em torno deste ente poderoso era ainda, uma forma de conseguir afastar da choupana os assaltantes e conseguir respeito de todos os espíritos pobres. Os maquinistas sempre pediam sua bênção antes de sair da cidade e enveredar serra a dentro, cidade afora. Muitos passageiros ressentiam-se desse hábito, mas nunca ouvi uma reclamação formal. Notava-se apenas nas caras de medo e constrangimento. Eu, cá entre nós, estava curioso. Alícia também, mais do que Marcel. Este argumentou contra a nossa idéia de consultar o Mago como faziam os maquinistas. Ele não é supersticioso, portanto não era receio do sobrenatural o que lhe inspirava tal resistência. Apenas apontou para o fato de, com tal ação, causarmos transtorno para todos os outros, que seriam obrigados a esperar enquanto nos atendiam. Eu próprio tenho que admitir que qualquer motivo, por mais besta que fosse, bastaria para largar aquela idéia idiota. Não tenho tolerância para as artimanhas dos místicos e suas balelas inócuas. Meu desprezo acaba sempre sobrepujando a curiosidade.

Continuemos, sem mais delongas. A serra de natureza selvagem, mas não inacessível, como a que encontraríamos mais adiante, era perfeita para pequenas paradas que serviam aos poucos passageiros para arejar a cabeça e exercitar o corpo e o espírito. Já estávamos a vinte horas viajando quando fizemos a primeira dessas paragens.

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