Por que não?

Parabéns àqueles que se dão ao trabalho de abaixar para ver o que está escrito num papel do chão. Parabéns àqueles que encontram mensagens em garrafas. Parabens àqueles que escutam palavras jogadas ao vento. Esta é a minha homenagem.

Wednesday, August 26, 2009

Velhos

Um grupo de velhos jogava cartas. Um deles tinha uma cicatriz que saía da borda do nariz e escorria como uma meleca metade do caminho até a boca. O que sentava na frente olhava para todos com os olhos semicerrados enquanto escondia o queixo com as cartas. Seus óculos pendiam na ponta do nariz, que era grande e redondo como três bolhas de sabão penduradas da testa. Ficava fingindo que reparava nos mínimos detalhes nas reações de seus oponentes, mas não conseguia concluir nada de substancial para o jogo. No final, a pose só servia para tentar convencer os outros de que ele tinha essa capacidade. Achava que se pelo menos isso funcionasse, teria alguma vantagem. A banca estava com o velho da cicatriz, o que significa, segundo a regra do pôquer, que a pessoa a sua esquerda deveria fazer o small blind, e o seguinte, o velho do olhar postiço e do nariz grande, deveria fazer o big blind. Sem hesitar, o elegante e menos idoso do grupo, com o cabelo tão oleoso que dispensava brilhantina, dedos longos e unhas bem aparadas, com os cotovelos juntos apoiados na barriga grande que fazia parecer que ele tinha engolido uma bola de futebol americano, e era o único com bigode no grupo – um bigode farto que cobria seu lábio superior - fez deslizar sobre a mesa uma ficha amarela. A seguir, o grande nariz inchado do próximo velho a jogar ressoou em um espirro contido, e seus óculos pequenos demais para o rosto redondo e grande, caíram. Sem deixar de alfinetar os outros jogadores com seu olhar postiço, colocou duas fichas amarelas sobre a mesa antes de posicionar os óculos novamente na ponta do nariz redondo. Com mãos delicadas e cheias de veias, o último jogador podia escolher se entrava ou não no jogo. Tinha poucas fichas e largou as cartas fechadas em sinal de desistência. Usava óculos escuros muito grandes e tinha o queixo proeminente sobre o pescoço de uma tartaruga.

Coçando, por hábito, a cicatriz com o quarto dedo da mão (aquele dedo que é tão inútil que nem sequer tem um nome apropriado: Não é o polegar, nem o indicador, nem o médio nem o mindinho... é o outro, que serve para coisas inúteis como aliviar uma coceira que não existe em um ponto da cara sem sensibilidade) pensa pouco antes de colocar duas fichas amarelas e uma vermelha. O velho mais jovem, do bigode, cobre a aposta, e o último considera a possibilidade de aumentar ainda mais.

Não dobra, mas cobre.

Ao revelar-se a primeira carta do flopy, o velho de pescoço de tartaruga que desistira do jogo explode em pragas e dá um soco na mesa, machucando suas mãos delicadas. Ele cala-se sem que nenhum dos outros lhe dê atenção. Já estavam acostumados. Ele tinha o hábito de gritar e xingar muito alto durante alguns segundos sempre que alguma coisa contrariava suas expectativas, ao invés de fazer como outros velhos, que ficam resmungando eternamente um monte de coisas incompreensíveis.

O bigodudo que tinha feito o small blind era o primeiro a apostar novamente. Fez um “hum...” significativo e bateu duas vezes com delicadeza na mesa, querendo dizer que esperaria que todos apostassem antes de decidir o que fazer. O olhar clínico e calculista do jogador seguinte pareceu satisfeito em perceber alguma coisa nesse comportamento, e sorrindo, apostou logo duas fichas vermelhas. Pode-se chamar de blefe quando alguém o faz por ignorância? De qualquer forma, as cartas em sua mão não justificavam de todo uma aposta tão alta.

Eles esperaram algum tempo enquanto o próximo jogador coçasse sua cicatriz, e esperaram pacientemente até perceber que ele esperava a jogada do seu explosivo companheiro. Todos ao mesmo tempo o alertaram que este já estava fora do jogo, mas ele não admitiu ter se enganado e alegou estar pensando na jogada.

O bigodudo zomba jovialmente: “Você pode ficar olhando para elas o tempo que quiser. As cartas não vão mudar. Faz logo a tua jogada antes que a gente durma.”

“... ou morra” completou o narigudo através das cartas que mantinha a altura da boca.

“Não me apressem, não me apressem... Aqui está. Satisfeitos?”

Cobre com duas peças vermelhas. Agora voltou à vez daquele que pedira “mesa”. Alisa o cabelo (farto, a comparar com o de seus colegas), ajeita o bigode, pousa as cartas viradas para baixo e puxa uma ficha branca. Dobra a aposta!

Os olhos clínicos deixariam transparecer alguma surpresa, não fosse o velho ignorante demais para reconhecer o momento de se retirar. Cobriu a aposta, e foi imitado pelo próximo a jogar, embora este último tenha hesitado visivelmente, o que, em pôquer, é um prenúncio de perda de dinheiro.

Abriu-se outra carta. Mais um murro, mais um urro, e breve já estavam todos em silêncio novamente. Aparentemente o pobre homem do pescoço de tartaruga perdera um excelente jogo. A ordem de apostas continua a mesma, e novamente pede mesa o que deveria jogar primeiro, e novamente o narigudo, deixando seus óculos caírem, aposta mais alto do que deveria. Inconseqüente: Três fichas vermelhas. Desta vez o grupo não tem de esperar que a banca perceba que é sua vez de jogar. Ele desiste de suas apostas. Agora o olhar clínico postiço se concentrava no bigodudo, que pegara novamente suas cartas e as analisava (se o olhar clínico não fosse postiço, o velho bigodudo ficaria mais contente, pois seria capaz de perceber a minúscula gotícula de suor que brotara da testa de seu oponente, mas ele apenas olhava, buscando intimidá-lo, pois tinha apenas um par de damas por enquanto)

Passou novamente a mão no cabelo, pousou as cartas e ajeitou o bigode antes de cobrir e pedir para a banca abrir as ultimas três cartas do flopy.

Ele não conseguira o Full Hand de que estava a espera, e temia o jogo do velho, apesar de saber que este estava blefando. Mas sabia também a dificuldade que era jogar com oponentes inconseqüentes. Eles caem em todas e não é possível blefar com esses caras. Pediu mesa.

Os óculos que pendiam na ponta do nariz gigantemente redondo, deslizaram e caíram por causa do sorriso que o velho abriu. Se fosse um profissional, ele saberia que esta era a hora de blefar, mas como sua visão obtusa não sabia distinguir no pedido de ‘mesa’, um sinal de fraqueza ou um blefe, ou mesmo por não conseguir formular esta pergunta, o sorriso foi apenas uma atuação, um contra-blefe que ia de acordo com seus princípios de pôquer: sempre fazer pensarem que você está com uma boa mão, mesmo quando não está. Apostou mais uma ficha branca, sem blefar blefando.

Funcionou. O bigodudo demorou, alisou novamente o cabelo, ajeitou o bigode, e desistiu do jogo. Agora seria ele a banca.

1 Comments:

Blogger MLF said...

honestamente, esperava mais do final... de resto. impecavel..
embora hei de concordar que há frases por demais alongadas.. abs !!

10:59 PM  

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