Por que não?

Parabéns àqueles que se dão ao trabalho de abaixar para ver o que está escrito num papel do chão. Parabéns àqueles que encontram mensagens em garrafas. Parabens àqueles que escutam palavras jogadas ao vento. Esta é a minha homenagem.

Tuesday, August 05, 2008

DIARIO RETARDATARIO

Ok... Minha historia ate agora, sem abreviaçoes.

Parti de Lisboa no dia 1 de Abril. Em Leeds, morei na casa de uma amiga. La arranjei trabalho no Viva Cuba, o pseudo-restaurante pseudo-cubano, como pseudo-cheff. Eu pseudo-trabalhava e por isso fui pseudo-demitido um mes e meio depois. Pseudo-demitido porque foi precisamente o tempo que eu planejei ficar em Leeds, e o dinheiro que eu planejei acumular (a cerca de menos de 5 pounds a hora, com os impostos, menos o consumo de bebida e as doaçoes para caridade – Salvem a Brenda, S.K.A.N.K, Entorpecentes Anonimos, Gree Peace, etc... – foi algo em torno de 300 pounds) durante a estadia. Na verdade, o que aconteceu foi que o patrao, Sep, me deu 15 dias para melhorar meu desempenho e, nas palavras dele, "proof your interest in working here". Eu fui honesto: "I`m not interested in working here".

Eu perdi meus dois primeiros onibus (o atraso vai ser uma constante impressionante durante toda a narrativa. Sera que o fato de a viagem ter comessado no dia da mentira tem alguma influencia, magica ou psicologica?) e parti, finalmente para Londres. Fui encontrar meu tio, que supostamente trazia meus cartoes de credito da conta portuguesa que eu abrira na vespera da viagem. Nunca cheguei a encontra-lo, o que nao foi um problema pratico, uma vez que ele esquecera os cartoes em Portugal de qualquer forma, mas foi frustrante ter a espectativa de encontrar um familiar obliterada. La esta o atraso.

Mas nao foi frustrante conhecer Londres e ter a experiencia da solidao completa pela primeira vez. Londres esta entre os pontos altos da viagem. Na primeira vez que la estive, um mes e meio atras (escala para Leeds) eu encontrara um livro. "The Book of Dave", por Will Self. ENCONTREI no AEROPORTO. Dave, a personagem central do livro, assim como Will Self, desprezam aeroportos e aqueles que o frequentam. No universo futuristico de "The Book of Dave", um herege é um "flyer". A ideia do livro é, aparentemente, de simples consepção: como seria o futuro se o nivel do mar subisse e inundasse a maior parte da Inglaterra? Mas a narrativa revela um intrincado espelho da nossa propria sociedade, a medida que descobrimos a personagem de Dave, o taxista que, em 2000, escreve em paginas de metal as regras para uma sociedade perfeita, como uma religiao em que ele, Dave, e o deus criador do universo. O livro eh encontrado no futuro, interpretado literalmente, e a sociedade idealizada por Dave torna-se realidade.

Com a Londres descrita no livro na cabeça, foi muito bom compreender na pratica os detalhes que inspiraram algumas das sutilezas (ou não) da historia. Existe mais por traz de tudo isso que eu estou falando. Não é apenas um grande livro. Visite authors@google no youtube e procure por Will Self para compreender o que eu quero dizer.

No ultimo dia antes de partir de Londres eu conheci Lina, a sueca fantastica que posteriormente me hospedou. Isso foi dois ou tres dias depois de partir de Leeds. O proximo destino era Glasgow, para ver a Glasgow School of Arts, de Mackintosh. Fiquei hospedado por dois dias no EuroHostel, o lugar onde todos os viajantes ficam em Glasgow, e depois me ludei para a casa da Jenny-Lee, outra figura fantastica em conjunto com seu marido Alex, que eu encontrei durante a viagem. Eles estavam associados ao CouchSurfing, a sociedade de hospitalidade que qualquer um pode conhecer visitando o site http://www.couchsurfing.com/. Curiosamente ela trabalha na empresa de Black Cabs de Glasgow em comunicação através do intercom com os motoristas. Ja tinham hospedado varias pessoas antes de nos e estavam hospedando um casal americano na primeira noite em que la ficamos. Nunca tinham sido hospedados, entretanto. Aparentemente eles nao viajavam muito. Diziam que era por falta de condições, mas acho que eles eram bem sedentarios mesmo. Eu fui apresentqdo a Glasgow e arredores por Jenny durante cerca de uma semana antes de partirmos para Glasgow. Compramos um buquet de flores para o casal como agradecimento pela hospedagem. Eu estava ficando severamente sem dinheiro e foi entao que eu percebi o valor de flores, com sua absoluta inutilidade pratica a ocupar uns dois metros cubicos da sala de estar, estao a gritar "obrigadooooooooooooooooo". Quanto mais caras, mais elas gritam. Mesmo assim eu nao gosto de flores. Mas nao posso negar sua vistosa qualidade de agradecimento.

Perdi o trem para Mull.

No dia em que finalmente la cheguei, tudo estava bom. A ilha eh habitada por 3000 pessoas e cerca de 10 barcas por dia trazem e levam, cada uma, centenas de turistas todos os dias, vindos principalmente da Inglaterra, mas tambem da Escocia continental e ate mesmo de outros paises! Passei uma semana fabulosa, a explorar os arredores de Tobermory, e além, com a ajuda de meu companheiro de hospedaria, Fred, que tinha um carro e um ingles perfeito. Era escocês e tinha viajado um bocado pelo seu pais. Fomos a procura de quedas d'agua e aguias douradas, demos a volta à parte norte da ilha, e bebemos uma cerveja na estalagem mais antiga de Mull (nao me lembro de quando... la pros 1700 ou 1800).

Na vespera do ultimo dia de Mull me ofereceram emprego e eu aceitei. O inerlocutor foi Ernesto, nascido na Foz do Iguaçu, que eu ate hoje nao sei se é na Argentina ou no Brasil. Ele falava 3 vocabulos em portugues: Cachaça, caipirinha, e tudo bom. O chefe era Javier, argentino, o dono de dois restaurantes em Mull, um em Tobemory e outro em Salem. Ele era um ex-viajante que se casara em Mull e la vive a oito anos. Me deu uma grande trouxa de roupa usada, um par de sapatos, um de tenis e um de botas antigas mas em perfeito estado. Fiquei por um mes a trabalhar naquele fim de mundo, hospedado meio na casa de Gabriel, meio na minha propria tenda, armada no campo do maior proprietario da cidade. Dividia o espaço com Highland Cows e uma familia de ovelhas. Vale a pena ressaltar que Salem se constituia de duas ruas, uma que era simplesmente a estrada periférica da ilha, que ligava todas as cidades pelo litoral, e a outra um caminho sem saida para o pier abandonado.

Trabalhei como garçon por 30 dias, conheci um pouco de Mull. Fiz 600 pounds e no penultimo dia escalei o Ben More, o unico Monroe da Ilha. Monroes são todos os elevados com mais de 3000 pés de altura, ou 914 metros. Eh um passatempo interessante o de alguns escoceses de colecionar Monroes, ou seja, chegar ao topo de todos os montes com mais de 3000 pés de altura. O Irmao do Alex esta tentando completar a coleçao. Eu nao podia deixar a ilha sem fazer pelo menos um. Meu plano original era atravessar o West Highland Way, um caminho a pé de Fort Willis até Glasgow. Como isso seria feito durante o mes de Junho, que fora entretanto ocupado pelo trabalho no restaurante, me contentei com a escalada ao Ben More, um caminho digno de nota e ate mesmo de uma historia a parte. Foram 24h de caminhada. Cheguei da empreitada de volta a casa de Gabi duas horas antes de partir para Glasgow novamente, de onde partiria para Londres.

Nao me atrasei desta vez, mas esqueci todos os apetrechos do celular, inclusive o carregador, mais um wiskey single malt 12 anos e um monte de charutos.

Meus planos, ao partir de Glasgow pela primeira vez, eram passar uma semana em Mull e depois fazer a West Higland Way. Portanto, deixei com Jenny todos os pesos mortos (livros, acordeon e xadrez). Retornei para busca-los e para visitar a Glasgow School of Arts, que acabara por nao visitar da primeira vez. Descobri um pouco mais de Glasgow. Foi uma estadia proveitosa. Nao deixei flores desta vez, entretando, mas descobri que as flores anteriores demoraram seculos para morrer.

Perdi meu onibus para Londres.

Consegui partir no onibus de 3 horas depois. Em Londres novamente visitei museus e etc... Mas a estadia em casa de Lina era extremamente confortavel. Passei a maior parte do tempo com ela em casa. Como agradecimento pela estadia deixei um nargule, que foi muito bem aceito pelas 5 moradoras da casa e pelo unico homem que eu conheci (la moravam 2) e principalmente pela unica pessoa que nao fumava (ela fumava APENAS nargules). No fim da estadia fui a um concerto fabuloso, Maria Schneider Orquestra, onde conheci Toninho Ferraguti, um acordeonista fantastico do Brasil que eu vi pela primeira vez a tocar com a orquestra petrobras no Projeto Aquarius, no Brasil. Conheci algumas pessoas fantasticas, como Regina, da revista inglesa Leros, totalmente em portugues e o musico Mike Crosby, da Jamaica. Com eles fui conhecer Renne Scots, o Bar de Jazz mais importante de Londres. Tradicionalissimo, mas com suas injustiças. O dono original morreu e a nova admnistraçao demitiu o empregado tradicional de mais de 20 anos de trabalho (atualmente um... perguntador-se-voce-precisa-de-taxis que trabalha na porta do Renne Scots). Fui à Jam Session onde estavam tocando varios musicos da orquestra e outros de igual merito. Fantastico.

Dois dias depois estava em Harwitch onde perdi a barca para Hook of Holland e tive que ficar duas noites.

Nesses dois dias de espera conheci 3 jovens da Suiça. Elas ficaram uma noite na cidade portenha da Holanda antes de partir para Amsterdam. Eu descobri, no camping, a merda que é ter seus 3 cartoes de credito recusados. Felizmente deu pra comer com eles. Os misterios do universo bancario.

Como nao tinha onde dormir; nem dinheiro para partir (achei, tolamente, que seria melhor trocar meus pounds na europa mas descobri que eh impossivel ganhar com o cambio durante uma viagem) fiz a unica coisa que me restava: carona para Rotterdam, onde estava acontecendo o North Sea Jazz Festival, e de onde eu poderia partir mais facilmente para Amsterdam.

Descobri ao chegar que era o ultimo dia do festival. Fui com toda a minha tralha para o lugar do espetaculo duas horas antes do final dos concertos. Uma senhora me deu seu bilhete usado para que eu pudesse entrar, mas foi desnecessario. Eu estava tao atrasado que nem me perguntaram nada a respeito disso. Bastou ir entrando. O unico concerto que deu tempo de assistir foi genial: Oregon. Com direito a Free Jazz e arranjos musicais em 11/4.

Na saida estava o One Man Band Jeff. Trompetista virtuoso, pianista de grande merito e personagem genial. Ele me falou da Jam Session pos North Sea Jazz Fest que rolava todos os anos, e que seria pela primeira vez no Hilton Hotel esse ano. Ele nao sabia como poderiamos entrar. Raxamos o taxi, e,com a minha tenda escondida sob o casaco, pousado sobre a bagagem, e com o acordeon ostencivamente posicionado, abordamos o porteiro do Hilton hotel.

"excuse me, this is a friend of mine who is arriving from Portugal to stay a few days"
"What is that?" perguntou o porteiro quando eu depositei o acordeon ao seu pé e retornei para buscar o resto da bagagem.
"It's his acordeon. He is a musician"
"...hum... go in".

Perfect! A jam ja estava rolando. Genial Simplesmente genial. Varios musicos do festival, principalmente os jovens fenomenos que acompanham os cabecas de cartaz, a tocar num ambiente, atrevo-me a dizer, familiar, liderados por um host emblematico. Eu toquei... EU TOQUEI! Basta dizer isso por que qualquer tentativa de descriçao do que eu senti ou de como foi é insuficiente.

Depois de passar a noite brilhante no meu paraiso na terra, tomei cafe da manha com as grandes estrelas do ultimo dia do festival, no Hilton hotel. "Excuse-me sir, can you tell me your room number please?" perguntou muito educadamente a senhorita que dava bom dia para todos os ilustres hospedes que chegavam para o desjejum.

"I have just checked out" respondi com voz tremula
"No problem. But I have to know any way"
"er... 84"
"Sorry what...?"
"Excuse-me... 8th floor"
"What room number?"
"Er... er... 4... Yes! 8th floor, room 4"
"Thank you very much. Enjoy your Breakfast"

Perfect!!!!! Comi como um rei e depois sai para a rua para procurar um lugar pra ficar o resto do tempo em Rotterdam.

Finalmente troquei meus pounds por algo em torno de 300 euros. Arranjei uma cama num Hostel por 16 euros a noite com Cafe da Manha e um armario gratuito para minhas coisas. Rotterdam é uma cidade triste. Destruida pela guerra, reerguida de forma monumental por arquitetos de pau pequeno. Como compensaçao pela perda de grande parte de sua herança arquitetonica, ou pelo tamanho de seu orgao sexual, esses arquitetos investiram em tamanho. A impressao que da é que voce anda anda anda e nao se move. Os predios esmagam o andarilho com sua referencia praticamente imutavel apos varios minutos de caminhada. Era como andar entre as montanhas de Mull.

Descobr em Rotterdam que Juba, o trombonista da banda estava em Paris, para o funeral de seu tio. Minha irma tambem estava la, mas nao cheguei a tempo de encontra-la (e desta vez nao perdi o onibus). O que aconteceu foi que nao tinha dinheiro, nem o telefone para contacta-la. Meus esforços se focaram em arranjar um lugar pra ficar e, como pude encontrar Juba logo no primeiro dia, em tocar, tocar e tocar. Ela partiu um ou dois dias depois da minha chegada. Ainda nao falei com ela desde entao. Foi uma pena. Enfim, ao descobrir que eles estavam em Paris, e considerando que Holanda tinha um custo de vida altissimo e poucas possibilidades de arranjar dinheiro ou estadia, comprei imediatamente uma passagem para França. As ultimas 24 horas na Holanda nao estavam cobertos pelos dois dias de estatia no Stay Ok, o hostel onde dormira, mas ainda podia deixar a bagagem no armario, portanto, a coisa logica a fazer foi viajar para Amsterdam, onde passei uma noite nao tao fabulosa, mas importante ao nivel de experiencia: Amsterdam é uma cidade de fantasia. Difere de Rotterdam por sua arquitetura, ainda reminiscente de eras passadas, assim como o urbanismo. Nao tive tempo de compreende-la com prefeiçao, mas deu pra vivenciar o Red Light District e as cofee shops.

No primeiro dia de Paris me apaixonei pela cidade. Depois de meses a viver sob uma lei que proibe que se beba no exterior e se fume no interior, em que a noite acaba depois da meia noite para todos que nao tem dinheiro para entrar em um clube, depois de passar meses a ler os e-mails da fanfarra e a estudar acordeon e a pensar em tocar com eles de novo, depois de me acostumar a chuva sem nem sequer perceber; chegar em uma cidade onde ninguem vai te incomodar se voce estiver dormindo bebado no jardim do Louvre, onde encontrei o Trombonista novo da Fanfarra para com ele explorar esse universo paralelo, onde faz sol quase sempre, e quando chove, chove de verdade, com raios e trovões; enfim, chegar em Paris depois de passar 4 meses no Reino Unido teve um efeito libertador em mim. 15 dias depois essa impressao apenas se confirma.

Passei dois dias a dormir durante o dia no Formula 1, o hotel mais barato de Paris, que fica em Villemonbleu, extremidade de uma linha de onibus que leva à linha 5 do metro de Paris. As noites foram passadas na rua graças ao encerramento dos transportes de Paris duas horas depois do anoitecer. Cedo demais para partir. Cada noite no hotel era 33 euros. Eu tinha 100 mais 65 da venda dos sapatos (na primeira noite de Paris, um grupo de playsons me ofereceu 50 euros pelos meus sapatos para que um deles, que calçava sandalias, pudesse entrar em um clube. Eu barganhei 65 por que o cara nao queria abrir mao das sandalias e eu so vendia se ele me-as desse). Depois dos dois primeiros dias eu parti a procura de um lugar para ficar. Achei em Bobbigni um predio abandonado onde uns trancers estavam passando o pos-festa completamente doidos de acido. Foi bom. Eles exploraram comigo o predio abandonado. Eu deixei a bagagem escondida la e parti com meu acordeon para o centro de Paris. Antes de partir, entretanto, achei um bar com um piano, onde comprei uma cerveja e conversei com o dono a respeito e tocar la. Marcamos um encontro para o dia seguinte.

No centro encontrei uma bicicleta quebrada que eu remendei usando meu cinto. Foi outra das melhores coisas que me aconteceram durante a viagem. Durante dois ou tres dias eu cruzei Paris como um peixe atravessa os oceanos. Fluir por entre as ruas e avenidas dessa cidade facinante foi outra coisa que me fez apaixonar por ela.

No meu encontro com o cara do restaurante eu conheci um velho punk que mora numa casa ocupa, nao longe de onde eu escondera as minhas coisas. Ele me viu tocar e gostou. Eh musico, assim como a maioria dos moradores da ocupa. Estou agora a escrever no computador de um deles. Vivo aqui a quase 10 dias, mas conheci pessoas em Paris, uma acordeonista, gente do couchsurfing, etc... que me possibilitaram pernoitar com mais conforto de tal forma que desses 10 dias, apenas uns 4 ou 5 foram passados em minha tenda, atualmente armada nas traseiras da casa.

Conheci, por intermedio da Kataline, a acordeonista, uma Ocupa Gigante, ao sul de Paris, que pretendo visitar novamente.

Alem disso, pouco ha que eu possa narrar, seja da minha estadia em Paris ou do resto da viagem, mas espero que em menos de 5 meses eu tenha mais algumas paginas a acrescentar, seja a respeito da minha estadia em Paris, ou do resto da viagem.

Fernando Negreiros,
4 de Agosto de 2008, Paris